A Charge Não Perdoa

17 de junho de 2020, 00:30

Pode parecer desproporcional mas não é a primeira vez que uma charge incomoda tanto um regime autoritário como a do amigo e parceiro Aroeira incomodou os reacionários deste governo. O desenho de humor, ou a charge (carga) surgiu justamente para criticar os poderosos. Fazendo ou não uso da caricatura como parceira, a charge sempre buscou revelar o avesso das coisas, defender os interesses dos oprimidos e tentar mostrar que o rei está nu. 

A charge dificilmente é a favor de algum regime. A sua força vem do revelar despudorado dos pontos fracos do opressor. A caricatura ajuda ampliando traços característicos de quem tem o poder e não esconde o estilo, nem nas feições.

As primeiras revistas que surgiram no Brasil criaram esse clima de denúncia divertida. O Malho foi uma delas. O Barão de Itararé com seu humor cáustico não desenhava mas suas frases funcionavam como uma charge poderosa. A campanha da vacina que acompanhava a reforma urbana do prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro foi alvo de charges impiedosas produzidas por desenhistas da época.

Já nos tempos do Pasquim, em plena ditadura militar, as charges e os textos de humor serviam para informar aos leitores o que de fato acontecia no país. Funcionou tanto que acabaram passando por uma censura rigorosa e sendo presos. O mais curioso é  que o regime militar acabou impondo uma tal censura que nem mesmo a prisão da redação poderia ser noticiada. Tudo por causa de uma charge publicada no jornal desenhada por Jaguar que debochava do grito do Ipiranga. Para mim foi só um pretexto. Eles queriam mesmo era colocar a patota em cana .. E conseguiram. O pessoal incomodava o regime.

Trabalhei todos esses anos no Pasquim e comecei ali a ter essa sensação que senti esses dias com a charge do querido Aroeira. Quando isso acontece e uma charge vira notícia é porque as coisas não andam bem, Aconteceu durante a ditadura e está acontecendo agora. 

Sei que os tempos mudaram. Nada mais é como já foi mas nunca se sabe. As distorções históricas e políticas continuam iguais. Parece que os regimes de direita subiram à superfície para pegar fôlego e voltaram a nos ameaçar. 

O episódio do jornal humorístico Charlie Hebdo em Paris, em que cartunistas e redatores foram mortos por extremistas islâmicos, entre eles o grande Wolinski, acaba se misturando na nossa cabeça. Jamais esperaríamos um fato semelhante acontecer. Mas aconteceu e acabou revelando que as injustiças , a violência e a intolerância religiosa existem em qualquer lugar do mundo. Basta incomodar que o humor vira alvo. 

O atentado ao Porta dos Fundos coloca o humor televisivo nesta mesma categoria de ameaça aos tiranos. Foi alvo de um atentado de direita, covarde e injustificado que nunca foi seriamente investigado. Agora o caso do Aroeira e dos outros chargistas da Folha que estão na mira da Procuradoria também porque criticaram a violência policial ligam o sinal de alerta.

Devemos nos preocupar? 

Acabamos sendo testemunhas atuantes de uma História contada por pessoas que não merecem essa função. Com a capacidade que o humor gráfico tem de resumir com um símbolo ou uma imagem uma situação de injustiça ou mentira a charge acaba sendo frequentemente um petardo mais eficaz do que uma análise escrita da situação política do país. 

Ambos precisam existir. Um denuncia, o outro analisa e aprofunda e juntos tentam construir um futuro mais justo. É difícil. Nós, cartunistas, temos um lápis inquieto nas mãos que eles não conseguem parar. Se é quebrado, fazemos a ponta e continuamos. O desenho não perdoa, denuncia e o humor é cumplice; acolhe e compartilha. É isso. 

Escrito por:

Cartunista, diretor de arte e ilustrador além de jornalista, comentarista e autor de teatro, cinema e televisão.

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