O dia em que a ditadura cedeu lugar ao concurso de beleza que coroou a primeira miss preta do Brasil

13 de junho de 2020, 14:44

O cenário do estádio Caio Martins, em Niterói, não guarda apenas a glória de partidas com lotação de público. Houve época em que suas arquibancadas serviram de acomodação para presos políticos. Fala-se em mais de mil, mas documentos revelaram um total de 339 presos. O suficiente para macular o currículo do estádio.

Numa condição pioneira o Brasil instituiu o primeiro estádio/prisão de que se tem notícia. Esse pioneirismo declinaríamos de bom grado, mas foi mesmo assim, no alvorecer da ditadura, que já no dia 23 de abril de 1964, o jornal O Fluminense estampava na coluna Dia a Dia, na página 3, a chamada: Presos vão para o Caio Martins.

A medida, anunciada pelo Major Lery dos Santos, chefe da DPS, visava encaminhá-los para “um alojamento mais amplo”, dando-lhes “melhores condições de higiene”. Dispensaríamos também, com muito gosto, a “boa intenção” do major. Mas como alegou, não havia mais espaço nas prisões e delegacias superlotadas de “insatisfeitos” com a deposição do presidente eleito, João Goulart, em 1º de abril (1964), dando lugar a uma longa ditadura (1964-1985).

Seis dias depois de anunciar a “inauguração” das novas acomodações, ele encaminhou correspondência ao Sr. Capitão Homero Barreto, intitulando-o Diretor do presídio Caio Martins.  Naquela época, o absurdo era o usual. Inútil tentar entender como uma autoridade responsável pela “Lei e a Ordem” podia se dirigir a outra, investindo-a de uma função inexistente, de um “presídio” idem.

Qualquer esforço para estabelecer lógica àquele momento resulta inútil. Valia o que se decidia no calor dos acontecimentos, desde que fosse para punir os opositores de forma violenta. Às favas, com as leis, é o que se observa desde os primeiros minutos da instalação do novo “regime”.

Imediatamente o Ginásio Caio Martins foi transformado em uma enorme prisão. As lideranças intelectuais e políticas de Niterói foram pegas em suas casas e locais de trabalho, sendo transferidas algemadas e debaixo de agressões físicas e verbais para o Ginásio Esportivo. Suas bibliotecas particulares eram jogadas nos caminhões da Polícia Militar para serem destruídas. Casas e escritórios invadidos, bem como sindicatos, alvo preferencial em Niterói.

A reprodução do recorte do jornal O Fluminense é considerada hoje uma espécie de certidão de nascimento desta “prisão” improvisada pela superlotação das delegacias e dependências carcerárias de modo geral. Quanto ao documento do major, uma prova contundente do quanto o sistema agiu ao arrepio da Lei.

Para se ter ideia, só mesmo tendo acesso aos relatos de ex-presos. São poucos os sobreviventes. A maioria já não está mais aqui para contar, dada as consequências na saúde que esta passagem pelo Caio Martins acarretou. Sim. Houve sequelas, traumas e vidas desmanteladas.

Em depoimento prestado a Comissão Nacional da Verdade, 11 advogados que militaram na defesa de presos políticos falaram sobre o que passaram no estádio, transformado em campo de concentração pela ditadura.

No escritório acanhado, no Centro da cidade, o mesmo revirado pela polícia, em sua procura, Manoel Martins, 88 anos, contou que Niterói foi invadida pelos militares em 1964, onde prenderam vários dos apoiadores de Goulart. Segundo ele, cerca de 1200 pessoas estavam presas no estádio. “Durante 18 dias, o Caio Martins foi o terror implantado. Para ir ao banheiro, íamos acompanhados por um soldado com metralhadora”, contou. “Éramos professores, operários e camponeses, muitos evangélicos das Testemunhas de Jeová. As pessoas chegavam em caminhões”, relembra. “Eu vi tanta coisa e continuei vendo e precisava registrar isso. O que aconteceu com essa cidade, com Niterói, esse foco de resistência”.

Os presos ficavam nos degraus de concreto do ginásio e quem tivesse uma formação superior, dormiam em dois quartos com espaço para pouco mais de 15 pessoas, cada. O banho de sol era feito no gramado com a supervisão dos militares nas arquibancadas.

“Foi um troço brutal. Havia um comandante perverso que usava chicote”, relata Manoel Martins, sem perder o tom sereno. Ele se lembra de uma história nos primeiros dias de que todas as refeições dos presos, vindas de um quartel, havia sido envenenada por ordem de um anticomunista. Com dificuldade para lidar com a situação, houve quem chegasse a buscar saídas radicais. “Tem momentos em que companheiros ficam desesperados. Um, de Cabo Frio, queria se jogar e quem o agarrou fui eu”, conta o advogado enquanto olha pela janela do alojamento a cerca de seis metros do chão. Ele aponta e mostra onde ficavam os soldados com fuzis 24 horas por dia mirando para os detentos.

“Eu me arrisquei, pois, qualquer movimento brusco podia provocar um tiro. Esse companheiro saiu daqui para o manicômio.” Segundo ele, outros cortavam os pulsos em uma tentativa desesperada de suicídio.

“Uma das imagens mais marcantes foi o dia em que abriram os portões do gramado para tomarmos sol. A cena daquelas pessoas rolando na grama nunca saiu da minha cabeça. Anos depois, voltei ao estádio, levado por meu neto, para assistir a uma partida de futebol e não aguentei ficar lá”.

Segundo pesquisa documental realizada pela Comissão da Verdade de Niterói [CVN], pelo menos 339 pessoas foram presas no local, sendo estas oriundas de todo o estado do Rio de Janeiro. O perfil profissional dos detidos era variado, sendo possível identificar médicos, advogados, jornalistas, motoristas, bem como outras profissões. Contudo, é possível afirmar que maioria dos encarcerados eram envolvidos com atividades sindicais.

 Em 18 de outubro de 2010 a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça realizou a 45º Caravana da Anistia na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense [UFF], em Niterói. Na ocasião, integrantes do Fórum dos Operários Navais de Niterói reafirmaram a proposta de criação de um centro de memória em homenagem aos atingidos pela ditadura no Estádio Caio Martins. Já em 17 de julho de 2013, quando no lançamento da Comissão da Verdade de Niterói, a mesma reivindicação foi feita por Benedito Joaquim dos Santos. Ex-presidente do Sindicato dos Operários Navais, ele esteve preso no Caio Martins. 

Presos dão lugar a concurso de beleza

O Caio Martins servia também como cenário para o concurso de Miss Guanabara, que escolhia a jovem mais bela de todo o estado. O concurso costumava acontecer no mês de junho. Por conta da necessidade de se “limpar” o estádio para a realização do certame da beleza, no ano de 1964, os presos ali empilhados e acusados de subversão tiveram de ser transferidos antes do dia 20 daquele mês. Embora, pela documentação localizada no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), no dia 3 ainda estivessem chegando novos detidos ao local. O Caio Martins costumava hospedar as moças e familiares acompanhantes, na semana anterior ao concurso. (Confira na imagem).

O fotógrafo Carlos Ruas, que mantém um blog com o nome de: “Niteroi: ontem e hoje”, descreveu assim, o clima que cercava a festa.

Uma das maiores atrações de Niterói era o concurso Miss Estado do Rio. Uma semana de rebuliço na cidade, com diversos programas. Vindas das cidades do interior as candidatas ficavam hospedadas no ginásio Caio Martins, recém-inaugurado, com restaurante, dependências para dormir, enfim a concentração das misses e suas acompanhantes até ao grande dia. Os garanhões rodeavam o ginásio. A segurança era total.

Com a saída dos presos, o Caio Martins voltou a fazer história. Desta vez, edificante. No dia 20 de junho de 1964, ali foi escolhida como a jovem mais bonita do Rio de Janeiro, pela primeira vez, uma negra, Vera Lucia Couto, a Miss Renascença.

Em 2014, ao recordar a conquista do título, Vela falou à TV Brasil sobre o que ouviu naquela noite: “Eu sabia que eu estaria representando uma raça, então, isso me deu muita força para enfrentar o que veio”, disse. “Tinha uma moça que gritava, corria por entre as mesas, dizendo ‘sai dai sua criola, seu lugar é na cozinha'”, relatou. Quando venceu o concurso, ela revela que o sentimento foi apenas um: medo.

A carreira de Vera Lúcia não parou no concurso de Miss Granabara. Ela conquistou o segundo lugar no Miss Brasil e o terceiro no concurso de Miss Beleza Internacional.

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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