(Vitória da Conquista – BA, 23/07/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro fala ao povo.rFoto: Alan Santos/PR

Ou o campo progressista entra na disputa ou vai comer poeira

23 de agosto de 2020, 17:45

A classe média se equilibra entre o feijão e o sonho. Aos trabalhadores da base da pirâmide é destinado só o feijão. Quando isto. Há meses em que até ele falta. Em tempos de excepcionalidade pandêmica, este era o risco, não fosse a oposição propor um auxílio emergencial que Bolsonaro, a princípio regateou. Por fim, aquiesceu entrar com R$ 200,00, mas acabou tendo de ceder ante as evidências. Haveria mais mortos de fome do que pela Covid-19, caso um auxílio substancial não fosse implementado.

Em campanha, de costas para o povo, ele deu mostras desde o primeiro minuto da pandemia de que não estava nem aí para o drama das famílias, e fazendo cruzes no calendário – não pelos que morreram vítimas da ausência total de coordenação do governo de uma política pública para o combate à doença -, mas pelos dias que faltam para 2022. Sem partido, Bolsonaro segue mirando no que despontar com mais vigor, para subir no estribo e se candidatar. O dele, o pretencioso Aliança, está natimorto (por enquanto). Por hora ele surfa no momento de pesquisas positivas para promover, com o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, um “big bang”, o programa “Renda Brasil”. O que quer que isto signifique. Do ponto de vista deles, mais uma atitude megalômana e marqueteira. Na perspectiva dos pobres, uma implosão dos seus direitos, que vão pelos ares numa canetada.

Na próxima terça-feira, quando anunciarem o tal programa “Renda Brasil”, que nada mais é do que colocar a campanha para a reeleição na rua, antecipando em muito o calendário eleitoral de 2022, sumirão do mapa como num passe de mágica, direitos duramente construídos, tais como o abono salarial, o salário família e o seguro defeso, pago a pescadores durante o período de pesca proibida. Tudo isto, com a desculpa de que os trabalhadores serão recompensados com um “aumento” do valor pago atualmente pelo programa Bolsa Família, e com a ampliação de 14 para 20 milhões de famílias beneficiadas. As despesas, hoje, com o Bolsa Família, são da ordem de R$ 30 bilhões e com o novo programa serão necessários R$ 50 bilhões.

Para uma família de um casal e dois filhos, se forem destinados R$ 600,00 – e eles não chegarão a esse valor – isto representará R$ 150,00 por pessoa. É claro que o dinheiro não cobrirá despesas do tipo: roupa, material escolar, comida e transportes.

Vai sobrar para os estados e municípios, porque o que está pactuado na Constituição para o grande “Estado”, não cabe no orçamento da União. Os pobres não cabem no Estado liberal. Daí o empenho para que os empresários ganhem um certo protagonismo com a desoneração. Doce ilusão. Sempre que ficam mais folgados, esses homens poderosos jogam as sobras no mercado financeiro, e não pensam em ampliar os seus negócios para a criação de novos empregos, porque na visão deles, pobre é um problema do “Estado”.

Outro ponto a ser anunciado se destina única e exclusivamente a eles, os patrões. O governo considera reduzir a contribuição patronal para o FGTS e para o INSS. Ou seja, aquela poupança forçada, para os que só compram o feijão, sem direito ao sonho e esperam um dia se aposentar e retirar o dinheirinho acumulado no fundo de garantia, nem vão se aposentar, e tampouco terão o que retirar no final da linha de uma vida de trabalho duro. O que espera esses trabalhadores no final desta linha é uma cova rasa. Eles já estarão velhos, cansados e sem reserva ou aposentadoria.

Some-se a esse quadro negro o adiamento do censo demográfico, que possibilita a formulação das políticas públicas com mais exatidão. Espertamente, Bolsonaro e Guedes levaram o censo para 2022, o que os desobriga de aumentar os repasses para estados e municípios. Deste modo, Bolsonaro governa para um país fictício, do mesmo tamanho que tinha há 10 anos, quando todos sabemos que as grandes cidades aumentaram tanto em população, quanto em pobreza. Tirando o censo do seu caminho ele reduz o público a ser atendido.

Lembrando, ainda, que os cálculos estão sendo feitos para o piso de R$ 1,045,00, para um trabalhador formalizado. Mas onde estão os formalizados? Sumiram. Deram lugar aos trabalhadores intermitentes, aos “horistas”, que ganham bem menos que isto. Trocando em miúdos, nada dessas ações geram empregos. Isto vai gerar, isto sim, uma sobrecarga de trabalho sem inserção de novos empregados. Os que estão dentro já são conhecidos dos patrões e as chances de novas contratações são mínimas. A tendência é de cada vez mais haver uma estratificação concentradora de trabalhadores, que excluem mais parcelas da população, e que ficarão a cada dia mais dependentes desses programas do governo. Nada de oportunidades de troca da classe D para a classe C.

Diferente do que foi o Bolsa Família, que tinha uma série de condicionantes, esse Renda Brasil tem um caráter muito mais assistencialista, sem porta de saída. O que gerava a saída para os do Bolsa Família era o crescimento da economia, criando mais chances de emprego. O modelo de Guedes e Bolsonaro é um Estado menos participativo, com maior protagonismo dos empresários e sem nenhum tipo de regulação.

Bolsonaro e Guedes vão querer empurrar para os estados e municípios a geração de empregos para esse contingente mais pobre. E, tal qual fizeram na pandemia, vão depois apontar o dedo e dizer que a União assistiu, quem não deu conta foram as pontas. (Estados e municípios). Foi assim que eles construíram a narrativa que consolidou em 47% da população a certeza de que ele nada tem a ver com as 115 mil mortes contabilizadas pelo coronavírus.

Ao anunciar todos esses pontos juntos, colocando tantos programas na rua e sob o mesmo guarda-chuva, é bom ficar de olho no verbo “remanejar”. Muitos “abracadabras” serão feitos para gerar verbas para obras, programas, campanhas e a construção de imagem positiva. Para a oposição, que acha que a corrida precisa ser feita na hora devida, 2020 é uma espécie de quebra-molas. Obriga a um estado de atenção. Daí por diante, ou o campo progressista segue o ritmo e entra na disputa, ou vai comer poeira. Enquanto isto, do lado de lá a sanfona toca: “Eu quero um ovo de codorna pra comer/ o meu problema ele tem de resolver…

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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