A direita de jaleco

26 de julho de 2025, 18:23

“Prometo que ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, o que terei como preceito de honra”.
Juramento de Hipócrates – ato solene e tradicional efetuado pelos médicos quando do término de sua formação acadêmica

O médico e filósofo grego Hipócrates, considerado o pai da Medicina, para quem doenças eram causadas por fatores naturais e não por punições divinas, como se acreditava. Imagem Canva/Wikimedia Commons

Se existe uma categoria cuja elite profissional é de direita no Brasil é a dos médicos. Com o compromisso do anonimato, conversei com médicos que fogem desse padrão ideológico e todos reconhecem a percepção que paira nos consultórios e corredores hospitalares – e mesmo na academia -, de que, amparados num elitistismo aristocrata, a “casa grande” dos médicos brasileiros tende a posições conservadoras e até de extrema-direita, o que fica evidenciado em conversas de grupos desses profissionais em redes sociais, onde quem pensa diferente costuma ser expelido. Tudo isso é lastreado pela postura do Conselho Federal de Medicina (CFM), e irradiado para suas regionais, uma entidade pública que, embora devesse cuidar institucionalmente da qualidade do trabalho e da ética médica, tornou-se uma filial de jaleco da TFP – a conhecida Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade -, fazendo lobby em favor de causas conservadoras, inclusive no Congresso, e aliada à indústria farmacêutica. Um caso recente acendeu meu pavio para esse artigo, mas que, infelizmente, não é isolado. E mostra que a categoria – refletida na sua autarquia – se distancia cada vez mais de sua função e se aproxima do extremismo político.

Uma resolução elaborada pelo CFM, sem a participação da sociedade civil e de pesquisadores, impôs restrições ao atendimento médico de pessoas trans, especialmente crianças e adolescentes. Entre outras coisas, a resolução proibia, independente de autorização dos pais, terapias hormonais, sem base em qualquer estudo, amparado no ranço ideológico e no preconceito. A resolução chegou a criar um “cadastro” de pacientes trans, o que é considerado incompatível com o direito à privacidade, intimidade e dignidade humana. Felizmente, na última sexta-feira, 25, a pedido do Ministério Público Federal, a Justiça Federal suspendeu essa resolução. “Pessoas monitoradas pelo Estado são um atrito com a ideia de dignidade humana”, escreveu o juiz federal Jair Araújo Facundes. A resolução feria, entre outras coisas, o chamado princípio da razoabilidade, que exige que as pessoas somente possam ter sua autonomia, liberdade e bens limitados mediante o devido processo legal substantivo. Segundo o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias, responsável pela ação que fulminou a resolução anti-trans, tratava-se de um retrocesso social e jurídico, que desconsidera evidências científicas consolidadas e agrava a vulnerabilidade de uma das populações mais marginalizadas do País.

“Vai pra Cuba!”

Não são poucos os casos em que o CFM, por ideologia ou corporativismo, agiu contra os interesses do país e, particularmente, dos maiores interessados, seus pacientes. Como a campanha, muito bem financiada, para dificultar o acesso ao aborto legal, e a resistência desequilibrada ao programa Mais Médicos, que trouxe o alistamento de muitos médicos estrangeiros em unidades nos rincões do país -onde a maioria dos nacionais não quer atender. A justificativa oficial do CFM é que seria preciso revalidar os diplomas do cubanos. Em “nota aos médicos e à sociedade”, de setembro de 2019, o conselho posiciou-se contra a possível entrada de médicos estrangeiros no país – citando uma suposta migração de 1.800 médicos cubanos no país. Por alguma razão, o CFM não gostou especialmente do fato de serem médicos da comunista Cuba, um modelo de sistema de saúde pública reconhecido mundialmente por sua abordagem universal, preventiva e estatal.

Isso, apesar de o Brasil viver uma geomedicina cruel: tem 7 médicos para cada mil habitantes nas capitais, contra menos de 2 para cada mil habitantes nas cidades do interior. O dado é da pesquisa Demografia Médica. O boom de cursos de medicina, com novos profissionais povoando o mercado, infelizmente, veio junto com a desigualdade demográfica na distribuição dos agentes pelo país. Segundo dados de 2024 do próprio CFM, o Brasil tem 575.930 médicos. Do total, 330.278 trabalham nas capitais, que reúnem menos de um quarto da população do país. Já o interior, que abriga 77% da população, tem 299.789 registros médicos, menos que nas capitais.

Jair Bolsonaro, chefe de Estado na pandemia, e o então presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, que, para agradar o chefe, aprovou a prescrição de medicamentos sem eficácia, como cloroquina. Foto: Isac Nóbrega/PR

Mais relevante que tudo foi o comportamento indecoroso do CFM na pandemia de Covid-19, quando apoiou a chamada “autonomia médica” para a prescrição de tratamentos, inclusive aqueles sem comprovação científica, como o uso da cloroquina, e evitou confrontar publicamente o negacionismo do então presidente Jair Bolsonaro. Ao contrário, o então presidente do CFM, o cirurgião-geral Mauro Ribeiro, que depois seria indiciado na CPI da Covid, tornou-se parceiro de Bolsonaro, chegando ao impensável: entregar ao ex-presidente um parecer favorável à prescrição de hidroxicloroquina. Dessa forma, o Conselho contribuiu para o caos na saúde ao permitir falsos tratamentos para Covid-19 e proteger médicos negacionistas. O Brasil teve 715 mil mortes, de um total de 39 milhões de casos confirmados. Mauro Ribeiro está preso? Não, fez parte da última chapa eleita e hoje é tesoureiro do CFM.

Atual presidente do CFM, José Hirán da Silva Gallo, que, mais de uma vez, manifestou apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, e defendeu a chamada PL do Estupro, que pune mulheres vítimas de crime sexual com pena de prisão. Foto: Divulgação/CFM

O atual presidente é o ginecologista e obstetra José Hiran da Silva Gallo, outro bolsonarista de carteirinha – sócio remido da trupe. Ele reassumiu a presidência em outubro de 2024, após já ter exercido o cargo entre abril de 2022 e setembro de 2024- como se vê, é uma monarquia hereditária. Uma grande família. Racionário raíz, chegou a participar de uma sessão no Senado Federal, em 2024, em que defendeu a chamada PL do Estupro, que pune mulheres que tenham realizado aborto com pena de prisão. A posição do CFM foi elogiada pela ala bolsonarista do Congresso e anexada ao projeto de lei que buscava equiparar o aborto tardio ao homicídio.

Mais de 60% dos conselheiros se reelegeram, e novos representantes, ainda mais à direita, também conseguiram espaço. Um conselheiro, o ginecologista Raphael Câmara Parente, eleito pelo Rio de Janeiro, foi secretário de Atenção Primária no governo Bolsonaro (2020–22). Em colunas, defendeu a abstinência sexual como política pública. Entre os 54 conselheiros titulares e suplentes eleitos, apenas 12 são mulheres, três a menos do que a composição anterior. Em 15 estados não há mulheres na composição das chapas eleitas

Quando a Covid campeava, e muita gente do meio científico se calava, ganhou notoridade o processo de calúnia e difamação movido pela direção do CFM contra a professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ligia Bahia, por sua defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e por análises críticas sobre a mercantilização da saúde no Brasil. A médica montou trincheiras contra a receita de cloroquina e da hidroxicloroquina – além de azitromicina e ivermectina -, como tratamento para a doença.

Bolsonaro não só comprou fartamente os medicamentos, como gravou um vídeo em 2020, ápice da tragédia, tomando o medicamento

Em 2020, o então presidente Bolsonaro postou um vídeo nas redes tomando hidroxicloroquina -, como tratamento para a Covid-19, além de minimizar a necessidade de compras de vacinas. Reprodução/Youtube.

A brava professora sanitarista Ligia Bahia também criticou a campanha antivacina de Bolsonaro – uma mentira que nos atormenta até hoje nas campanhas de vacinação contra outras doenças – que eram exemplares e passaram a alcançar um público menor. E os ataque da “classe” aos casos de aborto legal, previstos na Constituição. No último caso, o CFM – extrapolando suas competências – publicou resolução, em março de 2024, proibindo médicos de realizarem a assistolia fetal, realizado em vítimas de estupro que estejam com mais de 22 semanas de gestação – recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O CFM pede indenização de R$ 100 mil e a retratação pública da médica, além da remoção dos comentários do YouTube no canal “O conhecimento liberta”, onde postou sua indignação.

Imagem da médica Lígia Bahia, alvo de processo do CFM por dizer verdades. SBPC e Academia Brasileira de Ciência apoiam a professora. Foto: Monica Imbuzeiro

Luz no fim do túnel

Há, aparentemente, uma luz no fim do túnel – talvez seja uma lanterna, com pilha fraca -, mas vale a lógica: se há luta, sou resistência.

Movimentos como “Muda CFM” e críticas de entidades de classe têm feito algum estrago. Lançado em final de abril de 2024, o “Movimento Muda CFM” foi organizado por médicas e médicos vinculados à ABMMD (Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia – é, ela existe!), com o objetivo de denunciar o que consideram uma gestão ideológica e desconectada da ciência no Conselho Federal de Medicina.

Já a FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) tem se posicionado contra uma das bandeiras principais da CFM, em defesa de protocolos científicos e do acesso ao aborto legal, especialmente em casos de violência sexual.

Por que os médicos são contaminados pelo vírus reacionário?

Difícil dizer – qualquer hipótese pode soar aleatória. Pode estar ligada a uma combinação de fatores históricos, sociais, econômicos e institucionais. E ao nosso momento político. Uma hipótese: historicamente, a medicina no Brasil tem sido uma profissão associada a estratos sociais mais elevados, e isso contribui para uma formação dentro de uma perspectiva mais elitista, com valores conservadores predominantes. Mas provavelmente isso só sirva para parte deles – o topo da pirâmide. Há muitos médicos, mesmo que não sejam de esquerda, que não ser curvam e mantém a ciência acima de interesses políticos ou corporativos.

Além do mais, há interesses econômicos envolvidos, como a associação com a sempre próspera indústria farmacêutica. Desde março, uma norma, pra inglês ver, determina que médicos deixem claras suas relações com indústrias farmacêuticas, laboratórios, fabricantes de equipamentos médicos e empresas de insumos de saúde. Fala sério.

O fato é que, nos últimos anos, especialmente com a ascensão do bolsonarismo, observou-se uma aproximação de setores da ciência com pautas da nova direita brasileira. Isso inclui a defesa de valores tradicionais, oposição a políticas identitárias e ceticismo em relação a medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas – como a vacinação.

Quem acredita que a Terra é plana diz haver uma conspiração para nos fazer crer que o planeta é redondo. Getty Images.

Não vamos entrar em viagens como, sei lá, o terraplanismo. Quem ainda defende essa aberração, observe o próximo eclipse lunar. A Terra passa entre a Lua e o Sol, o que faz com que a Terra projete sua sombra na Lua. Note que a sombra produzida é redonda. Mesmo se a Terra fosse plana, mas com forma de disco, não produziria esse tipo de sombra. Tá, OK?

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Escrito por:

Jornalista há 40 anos, já foi repórter e editor nos maiores veículos do país - O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Correio Braziliense, Istoé - assessor de imprensa, analista sênior de informações e/ou ex-diretor de agências de comunicação corporativa - FSB Comunicação, Santafé Ideias, entre outras -, ex-professor de Jornalismo da PUC-RJ, trabalhou no Senado Federal e na Prefeitura do Rio. Já foi assíduo colaborador dos sites Os Divergentes e DCM. E criador, com meu irmão Paulo Henrique, da revista cultural Tablado, que durou 20 anos a acabou na pandemia. Premiado, entre outros, com Prêmio Esso, Embratel e Herzog. E, PRINCIPALMENTE, pai do Bruno e da Gabriela, orgulhos da minha vida.

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