A direita de jaleco

27 de julho de 2025, 10:47

“Prometo que ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, o que terei como preceito de honra”.
Juramento de Hipócrates – ato solene e tradicional efetuado pelos médicos quando do término de sua formação acadêmica

O médico e filósofo grego Hipócrates, considerado o pai da Medicina, para quem doenças eram causadas por fatores naturais e não por punições divinas, como se acreditava. Imagem Canva/Wikimedia Commons

O Brasil tem uma das classes médicas mais prestigiadas da América Latina — e também uma das mais conservadoras. Em ambientes restritos, como redes sociais, e mesmo em debates públicos, é comum ver entre a maioria dos médicos, especialmente na “Casa-Grande”, formada por sua elite empoderada, a defesa de pautas de direita – o que tem raízes profundas em nosso modelo social elitista, injusto e desigual. Tudo isso é lastreado pela postura do Conselho Federal de Medicina (CFM), e irradiado para suas regionais. Uma entidade pública que, embora devesse cuidar institucionalmente da qualidade do trabalho e da ética médica, tornou-se uma filial de jaleco da TFP – a conhecida Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade -, fazendo lobby em favor de causas conservadoras, inclusive no Congresso, e aliada à indústria farmacêutica. Um caso recente acendeu meu pavio para esse artigo, mas, infelizmente, não é isolado. E mostra que a categoria – refletida na sua autarquia – se distancia cada vez mais de sua função e se aproxima do extremismo político.

Uma resolução elaborada pelo CFM, sem a participação da sociedade civil e de pesquisadores, impôs restrições ao atendimento médico de pessoas trans, especialmente crianças e adolescentes. Entre outras coisas, a resolução proibia, independente de autorização dos pais, terapias hormonais, sem base em qualquer estudo, amparado no ranço ideológico e no preconceito. A resolução chegou a criar um “cadastro” de pacientes trans, o que é considerado incompatível com o direito à privacidade, intimidade e dignidade humana. Felizmente, na última sexta-feira, 25, a pedido do Ministério Público Federal, a Justiça Federal suspendeu essa resolução. “Pessoas monitoradas pelo Estado são um atrito com a ideia de dignidade humana”, escreveu o juiz federal Jair Araújo Facundes. A resolução feria, entre outras coisas, o chamado princípio da razoabilidade, que exige que as pessoas somente possam ter sua autonomia, liberdade e bens limitados mediante o devido processo legal substantivo. Segundo o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias, responsável pela ação que fulminou a resolução anti-trans, tratava-se de um retrocesso social e jurídico, que desconsidera evidências científicas consolidadas e agrava a vulnerabilidade de uma das populações mais marginalizadas do País.

“Vai pra Cuba!”

Não são poucos os casos em que a elite médica, bem representada no CFM, por ideologia ou corporativismo, agiu contra os interesses do país e, particularmente, dos maiores interessados, seus pacientes. Muitos médicos enxergam sua trajetória como fruto exclusivo de esforço e mérito pessoal. Um discurso que desconsidera as barreiras históricas enfrentadas por estudantes negros, pobres e periféricos, e reforça o desprezo por políticas afirmativas, como as cotas raciais nas universidades.

Esse viés meritocrático se conecta com o pensamento liberal clássico: menos Estado, mais mercado, mais iniciativa individual. Não por acaso, boa parte da classe médica se alinha com propostas de privatização da saúde e enxerga com desconfiança o SUS (Sistema Única de Saúde) – mesmo quando atua dentro -, um dos orgulhos nacionais, implementado em 1988, junto à nova Constituição, baseado no acesso universal aos cuidados de saúde.

A postura da “classe” contra o aborto, mesmo nos casos previstos na Constituição, levaram o CFM – extrapolando suas competências – a publicar uma resolução, em março de 2024, proibindo médicos de realizarem a assistolia fetal, realizado em vítimas de estupro que estejam com mais de 22 semanas de gestação – recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubou a resolução por entender que ela era incompatível com a Constituição Federal. 

Também foi marcante a resistência imposta ao programa Mais Médicos, que trouxe o alistamento de muitos profissionais estrangeiros em unidades nos rincões do país -onde a maioria dos nacionais não quer atender. A justificativa oficial do CFM é que seria preciso revalidar os diplomas do cubanos. Em “nota aos médicos e à sociedade”, de setembro de 2019, o conselho posiciou-se contra a possível entrada de médicos estrangeiros no país – citando uma migração de 1.800 médicos cubanos para o país. O CFM não gostou especialmente do fato de serem médicos da comunista Cuba, um modelo de sistema de saúde pública reconhecido mundialmente por sua abordagem universal, preventiva e estatal.

Isso, apesar de o Brasil viver uma geomedicina cruel: tem 7 médicos para cada mil habitantes nas capitais, contra menos de 2 para cada mil habitantes nas cidades do interior. O dado é da pesquisa Demografia Médica. O boom de cursos de medicina, com novos profissionais povoando o mercado, infelizmente, veio junto com a desigualdade demográfica na distribuição dos agentes pelo país. Segundo dados de 2024 do próprio CFM, o Brasil tem 575.930 médicos. Do total, 330.278 trabalham nas capitais, que reúnem menos de um quarto da população do país. Já o interior, que abriga 77% da população, tem 299.789 registros médicos, menos que nas capitais.

Jair Bolsonaro, chefe de Estado na pandemia, e o então presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, que, para agradar o chefe, aprovou a prescrição de medicamentos sem eficácia, como cloroquina. Foto: Isac Nóbrega/PR

E, claro, é inesquecível o comportamento lastimável do CFM durante a pandemia de Covid-19, quando apoiou a chamada “autonomia médica” para a prescrição de tratamentos, inclusive aqueles sem comprovação científica, como o uso da cloroquina, e evitou confrontar publicamente o negacionismo do então presidente Jair Bolsonaro. Ao contrário, o então presidente do CFM, o cirurgião-geral Mauro Ribeiro, que depois seria indiciado na CPI da Covid, tornou-se parceiro de Bolsonaro, chegando ao impensável: entregar ao ex-presidente um parecer favorável à prescrição de hidroxicloroquina. Dessa forma, o Conselho contribuiu para o caos na saúde ao permitir falsos tratamentos para Covid-19 e proteger médicos negacionistas. O Brasil teve 715 mil mortes, de um total de 39 milhões de casos confirmados. Mauro Ribeiro está preso? Não, fez parte da última chapa eleita e hoje é tesoureiro do CFM.

Atual presidente do CFM, José Hirán da Silva Gallo, que, mais de uma vez, manifestou apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, e defendeu a chamada PL do Estupro, que pune mulheres vítimas de crime sexual com pena de prisão. Foto: Divulgação/CFM

O atual presidente é o ginecologista e obstetra José Hiran da Silva Gallo, outro bolsonarista de carteirinha – sócio remido da trupe. Ele reassumiu a presidência em outubro de 2024, após já ter exercido o cargo entre abril de 2022 e setembro de 2024- como se vê, é uma monarquia hereditária. Uma grande família. Racionário raíz, chegou a participar de uma sessão no Senado Federal, em 2024, em que defendeu a chamada PL do Estupro, que pune mulheres que tenham realizado aborto com pena de prisão. A posição do CFM foi elogiada pela ala bolsonarista do Congresso e anexada ao projeto de lei que buscava equiparar o aborto tardio ao homicídio. Bolsonaristas atuaram diretamente para garantir a eleição da chapa de Hiram. O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), o empresário Luciano Hang e o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga aparecem em propagandas para o que consideram “a única chapa de direita de verdade” que disputa a eleição.

Mais de 60% dos conselheiros se reelegeram, e novos representantes, ainda mais à direita, também conseguiram espaço. Um conselheiro, o ginecologista Raphael Câmara Parente, eleito pelo Rio de Janeiro, foi secretário de Atenção Primária no governo Bolsonaro (2020–22). Em colunas, defendeu a abstinência sexual como política pública. Entre os 54 conselheiros titulares e suplentes eleitos, apenas 12 são mulheres, três a menos do que a composição anterior. Em 15 estados não há mulheres na composição das chapas eleitas.

Quando a Covid campeava, e muita gente do meio científico se calava, ganhou notoridade o processo de calúnia e difamação movido pela direção do CFM contra a professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ligia Bahia, por sua defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e por análises críticas sobre a mercantilização da saúde no Brasil. A médica montou trincheiras contra a receita de cloroquina e da hidroxicloroquina – além de azitromicina e ivermectina -, como tratamento para a doença. O CFM pede indenização de R$ 100 mil e a retratação pública da médica, além da remoção dos comentários do YouTube no canal “O conhecimento liberta”, onde postou sua indignação.

Bolsonaro não só comprou fartamente os medicamentos, como gravou um vídeo em 2020, ápice da tragédia, tomando o medicamento, debochado e sorridente.

Em 2020, o então presidente Bolsonaro postou um vídeo nas redes tomando hidroxicloroquina -, como tratamento para a Covid-19, além de minimizar a necessidade de compras de vacinas. Reprodução/Youtube.

A brava professora sanitarista Ligia Bahia também criticou a campanha antivacina de Bolsonaro – uma herança maldita que nos atormenta até hoje, tornando campanhas de vacinação antes exemplares, inclusive de doenças erradicadas, em um desafio estratégico para o Ministério da Saúde. A desinformação sobre vacinas ganhou espaço, criando o que se chama de hesitação vacinal – o atraso ou recusa em aceitar vacinas recomendadas, mesmo quando os serviços de vacinação estão disponíveis. Em 2015, 93% achavam as vacinas seguras, 94% as julgavam eficazes e 95% consideravam os imunizantes compatíveis com a crença dos brasileiros, mas em 2022 os percentuais caíram para 88%, 87% e 79%, respectivamente. As razões mais comuns são questões de confiança, de eficácia/segurança da vacina e preocupações com os eventos colaterais.

Imagem da médica Lígia Bahia, alvo de processo do CFM por dizer verdades. Foto: Elpídio Jr.

Luz no fim do túnel

Há, aparentemente, uma luz no fim do túnel – talvez seja uma lanterna, com pilha meio fraca -, mas vale a lógica: se há luta, sou resistência. No caso da médica Lígia Bahia, por exemplo, a perseguição do CFM, exigindo sua retratação, motivou uma nota pública conjunta de desagravo a ela por parte da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Movimentos como “Muda CFM” e críticas de entidades de classe também têm feito algum estrago. Lançado em final de abril de 2024, o “Movimento Muda CFM” foi organizado por médicas e médicos vinculados à ABMMD (Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia – é, ela existe!), com o objetivo de denunciar o que consideram uma gestão ideológica e desconectada da ciência no Conselho Federal de Medicina.

Já a FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) tem se posicionado contra uma das bandeiras principais da CFM, defendendo protocolos científicos e o acesso ao aborto legal, especialmente em casos de violência sexual.

A origem ilustre do “doutor” e a formação de uma aristocracia profissional

A medicina brasileira nasceu como uma profissão de elite. As primeiras faculdades do país — na Bahia (1808) e no Rio de Janeiro (1813) — eram acessíveis apenas a jovens brancos, ricos e, quase sempre, ligados às famílias mais influentes. Durante décadas, o título de médico, o “doutor” da cidade, não só garantia status, mas também colocava o profissional entre os “iluminados” da sociedade — uma espécie de aristocracia profissional.

Esse perfil, moldado no século XIX, ainda é perceptível hoje. Apesar da democratização do ensino superior nas últimas décadas, a maioria dos médicos no Brasil ainda vem de famílias com alto nível de escolaridade e renda, muitas vezes distantes das realidades sociais que enfrentam em seus plantões – um estrato desproporcionalmente rico, branco e conservador da sociedade.

A figura do médico como autoridade quase incontestável reproduz, em muitos aspectos, a lógica vertical da “Casa-Grande” diante da “senzala” – para citar de novo Paulo Freyre : um lugar onde poucos mandam e muitos obedecem. Na prática clínica, isso pode se traduzir em relações assimétricas com pacientes, resistência à escuta ativa e até em posturas autoritárias. Essa herança simbólica da elite escravocrata — que naturalizava desigualdades — ajuda a explicar por que tantos médicos rejeitam políticas públicas voltadas à redistribuição de renda, à equidade racial e ao fortalecimento do Estado.

O fato é que, nos últimos anos, especialmente com a ascensão do bolsonarismo, observou-se uma aproximação de setores da ciência com pautas da nova direita brasileira. Isso inclui a defesa de valores tradicionais, oposição a políticas identitárias e ceticismo em relação a medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas – como a vacinação.

Obviamente, não se pode generalizar e uma parcela crescente dos médicos, mesmo que não sejam de esquerda, mas com forte sensibilidade social, tem tentdo romper com esse modelo conservador. São médicos e médicas negros, periféricos, feministas, LGBTQIA+ e comprometidos com a saúde pública. Esses profissionais vêm ampliando o debate sobre racismo estrutural, desigualdade e humanização da medicina. É é necessário transformar a própria cultura médica e romper com o legado da “Casa-Grande” — que ainda pesa sobre os jalecos brancos do país.

  • Imagem ilustrativa

Escrito por:

Jornalista há 40 anos, repórter e editor de grandes veículos - O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Correio Braziliense, Istoé - assessor de imprensa e ex-diretor de agências de comunicação corporativa. Trabalhou no Senado e na Prefeitura do Rio. Já colaborou em diversos sites. Ex-professor de Jornalismo da PUC-RJ.Premiado, entre outros, com Prêmio Esso, Embratel e Herzog.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *