
A Cancún de Paes: Prefeitura do Rio proíbe música em quiosques, patinete elétrico e até bandeiras. Mas deixa “motos” atropelarem pedestres na ciclovia
Eduardo Paes tem toque em monitorar o que se faz nas praias do Rio, mas seu controle remoto tem pilha da Shopee. O “homem mais feliz do mundo” por administrar o Rio, vascaíno e portelense, é obcecado em fiscalizar a orla do Rio – o cartão postal mais democrático da cidade, o que restou da cidade mais favelizada do país, com o crime organizado controlando boa parte de seu território. Mas, claro, o alcaide só mira no que o interessa. É a chamada transparência Paes. Há uma absoluta desordem nas praias, calçadões e ciclovias, e um controle lucrativo na exploração dos quiosques na orla do Rio – o Orla Rio, do empresário João Barreto, que administra há seis décadas 300 quiosques “do Leme ao Pontal”, como cantou Tim Maia. Aí tem, ah tem.

Mas Paes não está preocupado com a feira livre de piratas no calçadão – de massagens à venda de todo tipo de produto estendido em cangas na orla – dificultando a livre circulação dos pedestres -, muito menos em ter liberado, contrariando a Assembléia Legislativa, uma lei que restringia o uso de ciclomotores na ciclovia. Lá estão eles, os autopropelidos ou scooters, que circulam no motor, não no pedal – a opção existe, mas ninguém usa -, correndo a mais de 60 km/h, verdadeiras motos, vendidas nas poucas casas do ramo – um cartel lucrativo, como a Lev, muito popular no Leblon, em que uma Ebike L + custa 10 mil reais – ou alugadas na própria praia. Motos – não dá pra usar outro nome – passando em alta velocidade ao lado de pedestres e usuários de bicicleta. Já fui atropelado por uma – e o “ciclomotorista”, depois de me ameaçar, fugiu. Nada demais, só uma fratura no tórax. Placa de licenciamento? Não existe, geralmente o que se lê é “aluga-se” – até porque já tem muito motoboy na ciclovia.
A lei “liberou geral” de Paes contraria o próprio Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Na prática, o que se vê diante da liberalidade: não só ciclomotores, mas pequenos bugues e até motos mesmo se sentiram confortáveis a circular no espaço antes reservado a pedestres, corredores, ciclistas e skatistas. Não é incomum que, em alguns trechos, seja preciso desviar de carros – mas isso é uma exceção, geralmente espertinhos querendo cortar caminho ou turistas perdidos.

Mas, voltando aos fatos do dia, um decreto da prefeitura do Rio, publicado há poucos dias, mostra com o que Eduardo Paes está preocupado. A medida, que entra em vigor a partir do próximo dia 31, promete trazer ordem ao espaço mais democrático da cidade. A “ordem pública” de Paes já é conhecida, tem finalidade e validade.
O texto traz uma lista com 16 condutas que passam a ser expressamente proibidas em toda a orla. Que homem! Algumas das novas regras — como o veto a garrafas de vidro, música e bandeiras em quiosques e barracas — foram alvo de críticas tanto de donos dos estabelecimentos quanto de frequentadores. Embora o decreto ainda não esteja em vigor, fiscais da prefeitura já percorrem as praias, e muitos comerciantes foram intimidados a inverter as faixas de identificação das barracas para não exibir os nomes dos espaços, uma das proibições contidas no decreto. A fiscalização e a aplicação das sanções deverá ser feita por agentes da Secretaria Municipal de Ordem Pública. Ou seja, vai ser um “hell de Janeiro”.
Instrumentos e grupos musicais, além de apresentações com som amplificado, não terão mais espaço, salvo, claro, “eventos especiais expressamente autorizados pelo Poder Público Municipal”, aqueles que a prefeitura faz cotidianamente em Copacabana, em frente ao Copacabana Palace, como o mais recente show da cantora norte-americana Lady Gaga. No quiosque, não pode. Grupos de boa qualidade musical tocam ali, geralmente tocando MPB para gringos, e o som, controlado, fica praticamente restrito ao quisque. Mas agora não pode.
Guarda-sóis, tendas, estruturas fixas ou móveis de grandes proporções também estão vetados, sem a autorização. Nas tradicionais barracas na areia da praia, não poderá mais haver identificação com nomes, bandeiras ou objetos fixados, assim como a identificação com logotipos “ou quaisquer outras formas de identificação nominal”. Gente, todas as praias do Rio funcionam assim – prática antiga que, ao longo dos anos, passou a demarcar o ponto de encontro para as diferentes tribos praianas.
Será permitida apenas “a identificação por meio de numeração sequencial atribuída pela autoridade competente”. O decreto também proíbe os chamados “cercadinhos”, estrutura física, normalmente na areia, para alocar seus clientes. Eles estão em toda a orla carioca, não causam problemas, mas devem estar incomodando alguém. Orla Rio, se não fui claro.
Tem mais, tem mais – e aí você imagina se a lei vai pegar e se ela vai tirar emprego de gente humilde ou facilitar a vida do Orla Rio. No caso de ambulantes, só será permitido que circulem na areia aqueles que tiverem autorização da Prefeitura do Rio, o que inclui vendedores com estruturas como “carrocinhas de alimentos, food trucks, barracas, trailers e similares, ainda que de forma temporária”. O texto destaca também a proibição ao comércio abusivo ou enganoso, “inclusive por meio de abordagens insistentes, constrangedoras ou inadequadas com o intuito de cooptar clientes”. Pronto, Paes quer reinventar o Rio.
Tem mais? Tem. As garrafas de vidro também não terão mais lugar na praia, ao menos por meio do comércio. Nem barracas, nem quiosques ou outros pontos de venda instalados em toda a área poderão vender bebidas nesse nesse tipo de recipiente. Ah, animais também não poderão ser usados para “fins de entretenimento, transporte ou comércio na orla, sem autorização sanitária e controle legal”. Não é piada. Atividades recreativas e escolinhas de esportes só poderão funcionar com o alvará municipal, e o acampamento com pernoite na praia também estará proibido. Escolinhas esportivas, outra tradição carioca, revelaram grandes atletas, seja surf, bodyboard, canoagem, futevôlei, beach soccer, altinha, beach tennis, yoga, instituições nas areias do Rio, algumas cuidadas por ex-atletas olímpicos.
Ou Paes está louco – suspeita que nunca foi desprezível – ou está servindo a seus interesses de sempre – o que lhe garantiu o quarto mandato à frente do Executivo carioca. Inclusive, com meu voto, diante da concorrência. A Câmara de Vereadores realiza uma audiência pública para debater o Projeto de Lei 488/2025, que cria o Estatuto da Orla do Rio. Claro, não vai dar em nada.
Fotos: arquivo pesssoal