
A eleição de Lula acelerou o golpe e a revolução que suspendeu a tutela militar
É obviamente árduo avaliar o sentido histórico de um período no momento em que ele ocorre, em meio ao turbilhão de fatos e versões envoltos na poeira gerada pela disputa política, ocultando e emitindo sinais contraditórios que muitas vezes se anulam, num cenário com pontos obscuros e versões com sentidos opostos.
Poucos, porém, vão disputar o ineditismo histórico das ações em andamento contra comandantes militares e outras altas patentes acusados de engendrar o golpe de Estado em 2022 e o início de 2023.
Os processos já levaram à prisão e devem punir vários senão muitos dos 23 militares acusados.
Será, a confirmar, um episódio raro, marcando uma reviravolta inédita na longa sucessão de intervenções militares na história do Brasil, inaugurada já no alvorecer da República, pelo golpe militar da Proclamação, em novembro de 1889.
Desde então, houve inúmeras intervenções, ameaças e golpes, numa sequência que está incrustada na história, não sendo alterada, antes agravada, pela revolução de 30, nem mesmo pelos processos modernizadores, comunicacionais e movimentos culturais ocorridos no seculo 20, ou antes sendo até enfatizada por eles, como na anistia concedida aos militares e torturadores ao final da ditadura instaurada pelo golpe de 1964. Toda essa sequência de golpes está também no banco dos réus.
Com a direta ou indireta submissão do regime à caserna, o Brasil nunca teve, a rigor, uma democracia digna do nome.
O que o país está assistindo agora com o julgamento do golpe é, portanto, uma revolução. Ela deve ser assim chamada pois opera, pela primeira vez, uma inversão histórica numa das colunas de sustentação do Estado brasileiro moderno: a tutela militar.
Algum especialista de manual poderia argumentar que faltam elementos de uma revolução, talvez pela falta de conflito armado, mas ele aconteceu, desde a conspiração entre oficiais comandantes de tropas, até na tentativa de Jair Bolsonaro para mobilizar as três Forças. Esteve presente na operação de vigilância dos movimentos e no plano de assassinato de um ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, do próprio presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, do vice Geraldo Alckmin, além do ex-ministro José Dirceu.
Houve a invasão dos Palácios e na mesma noite de 8 de janeiro de 2023 um face a face armado que quase degenerou em confronto entre tropa da Polícia Militar do Distrito Federal, sob intervenção, e outro contingente do Exército diante do próprio Quartel-General da força terrestre.
A reação do governo Lula, à frente de uma aliança legalista em torno dele, àquela altura composta por oficiais legalistas, derrotou os golpistas, de maneira inédita em quarteladas conservadoras lideradas por militares.
A rigor, essa revolução é anterior ao golpe, que foi desferido como reação a ela. O marco inicial dessa revolução é a própria eleição de Lula, em 30 de outubro de 2022. A vitória desatou o início dessa revolução, e acelerou a contrarrevolução a ela liderada por Bolsonaro num processo histórico hoje ainda não inteiramente superado.
Que a vitória de Lula tenha sido por vantagem apertada não desmerece em nada essa revolução que foi nesse sentido semelhante a tantas outras, vencidas muitas vezes por um triz. Que essa revolução tenha acontecido por meio de um pleito eleitoral ou em função das consequências dele, é uma situação que também se encontra em outras revoluções seguidas por semelhantes reações.
A revolução iniciada com a eleição de Lula, porém, não diz respeito principalmente ao tema, em si crucial, dos militares. Nem mesmo ao advento venturoso da primeira chance de o país se aliviar de sua perene ameaça, submetendo-os pedagogicamente ao crivo da lei.
A revolução é principalmente econômica. Ela muda a composição e a hierarquia das classes no Estado. Mas esse tema fica para outro artigo.
Por ora pra vale registrar um último aspecto relativo ao tema militar. Qual é o significado do fato de que a vitória inicial contra o golpe, em dezembro de 2022, tenha sido obtida com a divisão dos comandos das Forças e a recusa da maioria deles, inclusive muitos que até então toleravam ou até incentivavam os acampamentos diante dos quartéis, ao golpe?
Esses que transitaram na verdade o teriam feito apenas para evitar ser punidos e manter seu poder aguardando nas sombras o melhor momento de voltar a ameaçar? Não parece crível diante dos ódios, dissensões e ataques de parte a parte. As consequências dessa virada bem-vinda em direção à legalidade (mesmo dos que foram golpistas até então) ficarão como alternativa positiva perene frente ao golpismo. Uma outra possibilidade se abriu.
A correlação de forças entre o estamento militar e a sociedade se alterou. Mesmo na possibilidade real, mas remota, da tal anistia, no bojo de uma contrarrevolução, o episódio permanecerá e será lembrado e estudado para sempre.
Qualquer pequena ou grande conquista desse governo vem sofrendo ataques minimizadores da direita, da mídia hegemônica e até de progressistas.
Não poderia ser diferente no momento de avaliar o riquíssimo e virtuoso processo histórico desencadeado na aurora de Lula3 e que ainda está longe de se encerrar.
Foto: Presidente Lua/ Reprodução TV Globo