
Brasil teve heróis e condenados ao fuzilamento por estupro e crime de morte, na Segunda Guerra – Capítulo II
A participação do Brasil na Segunda Guerra, que agora motiva o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a atravessar o oceano e estar presencialmente em Moscou nas comemorações dos 80 anos do fim do nazismo, pela entrada dos russos em Berlim, foi um marco na vida brasileira. Nos levou a estreitar laços – e criar a tal dependência dos EUA -, e nos legou generais influenciados pela cultura e o modelo de “segurança” estadunidense, que até hoje está presente na vida nacional, como a paranoia anticomunista.
Assim que chegaram à Itália, em julho de 1944, os soldados brasileiros da FEB tiveram um choque de realidade. Os detalhes estão contidos no relatório detalhado do comandante da campanha, o general João Batista Mascarenhas de Moraes. Ele não escamoteia, não tenta dourar a pílula. Não só incensa os que se destacaram pelo bem, como registra os que cometeram faltas. Das leves às graves.
Por exemplo, grupos de jovens que, nos finais de semana, pegavam os veículos do Exército para tirar folga nas cidades e se divertir, às escondidas dos superiores. Mas também não esconde os crimes graves perpetrados pelos homens das fileiras dos seus batalhões, que deixaram naquele país histórias pesadas e nada edificantes, como a morte de uma jovem de 15 anos, estuprada na frente do tio. Ao tentar defendê-la, foi morto por uma metralhadora de um dos soldados, que invadiram a sua casa.
Os processos foram conduzidos por nossa Justiça, levada pelo Exército ao palco da guerra, bem como um grupamento da polícia militar paulista, que também viajou para registrar os flagrantes dos soldados brasileiros. As pastas com esses processos compõem o acervo histórico do Superior Tribunal Militar e estão à disposição do público que desejar consultá-las.
Num estilo documental, de linguagem elegante – muito diferente das mensagens trocadas no WhatsApp pelos atuais militares arrolados em atos golpistas, recheadas de palavrões -, Mascarenhas de Moraes descreve, assim, os primeiros momentos das tropas no cenário da guerra:
“Com a cheda do nosso 1º contingente ao Teatro de Operações na Itália, uma nova fase ia ter início, mais dura e de maior responsabilidade, porém ansiosamente esperada por todos”, registrou.
“O escalão avançado iniciou sua vida na Itália, no acampamento EGNANO (Bagnoli), situado no fundo de uma cratera do vulcão extinto “ASTRONIA”, sujeito à friagem e à densa neblina que caía às 21 (vinte e uma) horas e só desapareceria às 9 (nove) ou 10 (dez) horas do dia imediato. De dia o sol era rigoroso e a poeira sufocante. Foi um grande foco de gripe, onde a tropa brasileira passou 15 dias numa área pequena e de certo modo desconfortável”, relatou.
“A área foi preparada pelos americanos, numa região destinada, em tempos idos, às caçadas e distração de pessoas de alta linhagem italiana.
Existiam privadas, barracas para a cozinha, torneiras, banhos quentes e sulfurosos e algumas barracas pirâmides para oficiais.
A tropa partira do Rio sem barracas, por imposição da missão americana, pois deveria encontrá-las no estacionamento a ser ocupado na Itália. A surpresa foi geral quando se soube não ter havido a necessária comunicação ao comando do Teatro por parte da Missão”, moderou o general.
“No dia da chegada não foi possível o fornecimento das barracas destinada às praças e com isso a noite de 16 para 17 de julho a tropa passou ao relento, sob forte neblina e intenso frio, dando em resultado um grande número de resfriados”.
O descuido dos “americanos”, que deixou os praças ao relento e expostos ao frio, acarretando uma onda de resfriados foi compensada no dia seguinte, mas nem tanto. Pelo relato do comandante da FEB, no dia 17 teve início a distribuição de “barracas, mosquiteiros e outros utensílios de estacionamento, enquanto que as cozinhas não funcionavam por falta de fogões. Durante 4 dias, a tropa comeu ração “C” até que os fogões fossem instalados e entrassem em ação.
A situação dos suprimentos foi se normalizando aos poucos e a tropa passou a sentir os efeitos da alimentação com ração americana mal preparada pelos nossos cozinheiros, precariamente instruídos para a confecção”, detalhou.
Mas até aí, foram se adaptando. Tudo era novo e difícil, para aqueles rapazes mal saídos da adolescência, muitos vindos do interior, tendo que lidar com veículos nunca dantes vistos, regras de trânsito diferenciadas, armamentos modernos e distintos daqueles a que estavam treinados. Tudo isso no ato da chegada, já entrando em ação.
Pouco depois da chegada as tropas nacionais foram praticamente incorporadas às estadunidenses, como dá a entender, Mascarenhas de Moraes, nesse trecho do seu relatório: “No dia 12 (agosto de 1944) recebeu a tropa brasileira a primeira inspeção dos Chefes Americanos”. O general grafa assim, em maiúscula, traduzindo a subserviência com relação aos EUA.
“Uma equipe de oficiais do 5º Exército, da qual faziam parte seis Generais e doze oficiais superiores, chefiada pelo general PRANN, chefe da 3ª Secção daquela Grande Unidade, tomou contato com o Comando e todos os órgãos subordinados, aumentando as relações de inter-dependência”, registrou.

Com todos esses entraves e dificuldades, as tropas brasileiras se destacavam nas missões que lhes eram conferidas pelos comandos dos EUA. Porém, longe de casa e dos laços familiares, num cenário de guerra, alguns daqueles soldados acharam que viviam o “vale tudo”. Para esses pouquíssimos, mas significativos casos, o que encontrassem pelo caminho podiam colocar sob a mira de suas armas e sob o poder das suas insígnias. Foi o caso dos soldados Adão Damasceno Paz e Luiz Bernardo de Moraes, condenados a penas de morte, pelos crimes infames e hediondos.

A capa do processo resistiu ao tempo e guarda o local – na localidade de Madognana, na cidade de Pistoia -, e do escrivão que lavrou a autuação, Walter B. Faria, 2º tenente. Nas páginas seguintes, o crime de estupro contra Margelli Giovanna, de 15 anos, e a morte do tio, Vivarelle Leonardo Giovanni, de 57 anos, é narrado em pormenores que impactam pela torpeza. Os soldados vão à casa à tarde, tentam ganhar a confiança da família, para à noite voltar e transformar as suas vidas em tragédia. O caso se deu em 25 de janeiro de 1945.


Por ordem do general Mascarenhas de Moraes, é aberto um inquérito, a fim de apurar os fatos e punir os culpados:

A Justiça Militar brasileira recebe ajuda dos carabineiros locais para ouvir testemunhas e aprofundar as investigações.

Acareados com a vítima, seus familiares e testemunhas, os soldados acabam por admitir o crime e assinam depoimento.

Os detalhes do laudo cadavérico do tio da vítima de estupro, apontam que os tiros de metralhadora o pegaram na boca e nas costas, levando-o à morte imediata. A Autuação, com 224 páginas, contém os depoimentos de Adão Damasceno e Luiz Bernado, em que admitem o crime. Foi Luiz Bernardo quem desfechou os tiros de metralhadora contra o tio da vítima.


Por fim, no dia 7 de fevereiro de 1945, os soldados Adão Damaceno e Luiz Bernardo de Morais receberam a sentença de morte. Como é bem sabido, a Justiça brasileira protela e aceita intermináveis recursos. No dia seguinte à sentença e o advogado Bento Costa Lima Leite de Albuquerque entrou com recurso, pelos clientes. Restou, ao fim e ao cabo – depois de terem a pena comutada para 30 anos de prisão fechada, e com o cumprimento de seis anos e meio -, Adão Damaceno e Luiz Bernardo de Morais foram devolvidos à liberdade em 26 de março de 1951.

Fotos: FEB/Arquivo STM
Aguarde: no terceiro e último capítulo, confiram os números da guerra. A volta ao Brasil e a carta da Sra. Darcy Vargas, recepcionando os pracinhas.
Fotos: Arquivos/STM