
Com a ausência do bolsonarismo nas ruas, quem pode almejar 50% do Parlamento é Lula
Há quem considere desprezível o fato de que a manifestação bolsonarista tenha reunido menos de 15 mil pessoas. Os meios de comunicação destacaram o fato pelo baixo comparecimento, como se fosse um elemento da paisagem, sem extrair dele, porém, maiores consequências. Na verdade, a falência do ato é a emergência visível de um processo em curso nas profundezas da extrema-direita, resultado de múltiplas e variadas determinações concorrentes.
O dia em que Bolsonaro foi abandonado na Paulista expressa uma progressiva decadência do bolsonarismo em sua capacidade de fazer mover suas massas. Desde as manifestações de junho de 2013, há longos oito anos, a extrema-direita vinha se alimentando da capacidade de levar dezenas e centenas de milhares de pessoas às ruas, repetidas vezes e quando lhe aprouvesse. Esse manancial das ruas parece, pela primeira vez, estar se exaurindo, talvez para sempre.
Não se trata de uma perda qualquer. A mobilização popular, a presença física, no espaço público era o ativo político de maior impacto do bolsonarismo sobre o ambiente político. Ela impactava o ânimo do conjunto das correntes conservadoras. O mar de gente criava uma espécie de campo gravitacional que submetia indecisos, calava os vacilantes e assim impunha alianças.
Sem ela, mesmo que temporariamente, o movimento expõe fragilidade, o que pode prenunciar uma decadência mais séria. Não quer dizer que Bolsonaro tenha perdido apoio nas redes e da opinião pública, por ora. Apenas perdeu apelo para levar seu público às ruas.
É sintomático que esse enfraquecimento se dê justo quando era mais necessário o surgimento no campo bolsonarista de um herdeiro político à altura.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, a quem caberia trazer a massa à capital de seu Estado, não consegue empolgar.
Em seu discurso repetitivo, nostálgico e perplexo, Bolsonaro recordou o tempo bom das motociatas, que desapareceram. O ex-presidente citou pesquisas atestando que o bolsonarismo cresce neste ou naquele Estado, sendo que antes a evidência oferecida pelas multidões dispensava o recurso a qualquer ibope.
Diante do quadro agora melancólico restou ao depressivo presidente apresentar sua rendição total: não falou de anistia, chegou a dar impressão de que abria mão da candidatura a presidente, não indicou um herdeiro. Afirmou que ganhar a Presidência não é importante. Pediu 50% da Câmara e 50% do Senado e disse que com isso ele muda o país. Como se fosse possível ganhar tal bancada sem uma cabeça de chapa como referência.
A mensagem é esta: Lula pode ganhar desde que ele (o inelegível) ganhe metade do Parlamento. Em retirada, ele abre mão da disputa.
Bolsonaro parece querer perder, desde que isso evite alguém que ocupe seu território na extrema direita do eleitorado.
Seja como for, há ali uma crise imensa fermentando. Uma massa cada vez mais desanimada com a sucessão de fracassos: a derrota em 22, seguida pelo desastre na tentativa de golpe e o desfile de práticas criminais sendo exibidas ao país em capítulos pela Polícia Federal, pela Procuradoria Geral da República, pelo Supremo Tribunal Federal, pela mídia, pelas redes sociais.
São muitos problemas somados no histórico de incompetências.
A capacidade de mobilização da extrema-direita está perdendo ímpeto pelo medo do encontro com a lei. Está esmorecendo pelo efeito da atuação do governo federal, cujos programas começam a fazer entregas mais perceptíveis para diversos estratos.
Fica ademais difícil seguir atraindo a massa conservadora, quando seus líderes poderosos, suas referências infalíveis, estão a caminho da cadeia. Quem quer entrar num ônibus de caravana sob risco de envolvimento em novas aventuras? Quem confia que não corre nenhum risco, à vista do que passou com celerados de 8 de janeiro de 23, levados em comboio ao quebra-quebra dos palácios? Eles correram riscos, foram presos, processados e condenados. Ao final foram abandonados e tachados de malucos pelo chefe acovardado diante de Alexandre de Moraes.
Se desistir de valorizar o papel de um herdeiro político na disputa presidencial, como sinaliza confusamente, Bolsonaro estará se juntando de antemão pela segunda vez aos cadáveres políticos abatidos tantas ocasiões neste século ao pé da cidadela eleitoral lulista.
Se as manifestações bolsonaristas definham, isso não implica necessariamente que o movimento não possa prosseguir galvanizando metade do país nas eleições. O problema maior é a desorientação política de um Bolsonaro tão autocentrado e inseguro que acha que pode abrir mão da disputa presidencial e ao mesmo tempo pedir ao eleitor, cada vez mais acomodado e alheio que se empolgue na batalha eleitoral, que lhe dê 50% da Câmara e 50% do Senado. Parece mais lógica a estratégia que apresenta Lula. Para fazer uma bancada poderosa em 2026, um candidato a presidente forte é fundamental. Nesse sentido, Lula parece em condições de sonhar, a depender da campanha, com a composição de uma ampla e mais fiel bancada pluripartidária nas Casas, que chegue, ela sim, aos 50%. Considerando a situação desesperadora de 2018 e a vitória em 2022, Lula e seus aliados já mostraram que nada é impossível.
Algo acontece no seio do bolsonarismo e essa oportunidade exige toda atenção.
Do lado de cá, com a proposta certa, a bandeira da defesa dos pobres derrota a extrema-direita na batalha das redes. É mais um tabu que se desfaz. A mensagem é o meio.
Imagem do ex-Jair Bolsonaro e do governador Tarcísio de Freitas, no alto do carro de som, no ato da Paulista, no fim de semana. Foto: Reprodução / Redes sociais.