
A frente do fundo do poço
Na manhã de 29 de abril, portanto, há pouco menos de um mês, um grupo de senadores, a maioria deles eleita por estados do Norte, todos com vasta folha corrida, se reuniu em torno da criação de uma alegre confraria voltada a dar apoio às pretensões do governo federal em explorar petróleo na foz do Rio Amazonas, na região designada como Margem Equatorial, na costeira do Amapá. Deram a si um nome pomposo: Frente Parlamentar em Defesa da Exploração de Petróleo na Margem Equatorial do Brasil. Dali a 22 dias, a Frente, fruto de um projeto de resolução do Senado, foi prontamente aprovada pelo presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (União-AP), um dos principais articuladores em favor do projeto de exploração.
A formação do grupo passaria em brancas nuvens, como mais uma dessas agremiações sem sentido montadas por parlamentares inúteis, não fossem dois detalhes.
A Frente Parlamentar foi referendada um dia depois de o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, ter aprovado, sobre pressão do governo e do Congresso, o conceito do Plano de Proteção e Atendimento à Fauna Oleada apresentado pela Petrobras como parte do Plano de Emergência Individual. A tradução em bom português é a seguinte: abriu-se caminho para autorizar a Petrobras a perfurar um poço em busca de petróleo em um bloco da Bacia da Foz do Amazonas, decisão tomada pelo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, apesar de parecer contrário assinado por 29 técnicos do órgão ambiental. Em maio de 2023, Agostinho havia indeferido essa licença, de próprio punho, por conta dos riscos apontados pela área técnica.
A outra questão diz respeito ao nível e à reputação dos senadores evolvidos na criação e na formação da Frente Parlamentar em Defesa da Exploração de Petróleo na Margem Equatorial do Brasil. Trata-se de uma horda de bolsonaristas ligada, majoritariamente, aos interesses do agronegócio, envolvida em crimes que vão de fraude e peculato a grilagem de terras indígenas. Ainda assim, além de Alcolumbre, a criação da frente foi comemorada pelo senador Randolfe Rodrigues, do Amapá, um dos nove parlamentares da bancada do PT, no Senado.
Para entender a gravidade do tipo de apoio que o governo Lula está angariando para submeter o Ibama e enfiar a exploração da Margem Equatorial goela abaixo do País, é preciso, antes, explorar o fundo do poço em que decidiu se meter, no Senado da República.
Senão, vejamos.
O criador e chefe da Frente, senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), é alvo de investigações, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), por conta de envolvimento em atividades ilegais relacionadas à grilagem de terras indígenas no Pará. Zequinha, ex-líder da bancada evangélica no Senado, é investigado, desde o ano passado, acusado de ligação com uma organização criminosa responsável pela invasão e desmatamento da Terra Indígena Ituna-Itatá, localizada no município de Senador José Porfírio, no Pará. Ele também é acusado de advocacia administrativa, ou seja, de utilizar o mandato de senador para favorecer interesses de grileiros na região.
Em 2011, Zequinha também foi acusado de exigir uma porcentagem dos salários de seus assessores parlamentares, prática conhecida como “rachadinha”, para repasse ao partido ao qual era então filiado, o PSC, sigla pela qual Jair Bolsonaro se elegeu, em 2018. O senador admitiu a prática, mas alegou que era uma decisão da executiva estadual do partido. Em 2016, o senador virou réu na Justiça por esse caso, mas nada aconteceu a ele, até agora.
Outro apoiador da Frente é o senador Márcio Bittar, do União Brasil do Acre. Em 2020, Bittar foi alvo de uma investigação no STF relacionada ao uso irregular da Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP) durante mandato como deputado federal pelo PSDB, um ano antes. A investigação diz respeito a pagamentos a uma empresa de comunicação que, segundo o Ministério Público Federal, funcionava como fachada para desviar recursos públicos. O inquérito permanece sob jurisdição do STF devido à chamada regra de “mandatos cruzados”, que mantém o foro privilegiado quando o parlamentar muda de cargo, mas continua no Congresso Nacional.
Além disso, em 2023, sete entidades do Acre emitiram uma nota de repúdio insinuando que o senador agiu de forma racista ao votar a favor de uma emenda que visava acabar com as cotas raciais e para pessoas com deficiência em instituições federais de ensino. As entidades consideraram a posição do senador inadmissível, especialmente considerando que a maioria da população do Acre se autodeclara preta ou parda.
O senador Jaime Bagattoli, catarinense eleito pelo PL de Roraima é outra estrela vibrante da Frente do Fundo do Poço. Desde que foi eleito, em 2022, não para de aprontar. Em 2023, o senador foi citado em um dossiê do observatório “De Olho nos Ruralistas”, acusado de ser proprietário de uma fazenda em área de terras indígenas homologadas em Rondônia.
De fato, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Transportadora Giomila, parte do grupo empresarial fundado por Jaime e um irmão, Orlando Bagattoli, é titular da Fazenda São José, um imóvel de 1.118,25 hectares dedicado à pecuária bovina. A área foi adquirida pelos irmãos, em 2011, e está sobreposta à Terra Indígena Rio Omerê, um território de recente contato, em Corumbiara (RO), homologado desde 2006. Nada foi feito em relação ao caso, até hoje.
O próximo é um velho conhecido do povo brasileiro pela inusitada e folclórica participação na CPI da Covid-19, no Senado Federal, em 2021. Ele mesmo, Luiz Carlos Heinze, do PP do Rio Grande do Sul, detrator da ex-atriz pornô Mia Khalifa, a quem acusou de liderar pesquisas científicas contra a eficiência da cloroquina. Ele chegou a ter o nome colocado no relatório final da CPI, mas acabou sendo beneficiado por um acordo de bastidor.
Em 2013, quando era deputado federal, Heinze referiu-se, em uma audiência pública, a quilombolas, índios, gays e lésbicas como “tudo que não presta”. O caso foi parar no STF, mas acabou arquivado, por conta de filigranas processuais, pelo ministro Luís Roberto Barroso.
Mais recentemente, Luiz Carlos Heinze reapareceu no noticiário por ter sido mencionado, em 2024, na delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante-de-ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo o militar, Heinze sugeriu que o Exército roubasse uma urna eletrônica sob a alegação, baseada em um falso documento do Ministério Público Militar, de que país estava em GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Assim, revelou Cid, para garantia das eleições, Heinze entendia que as Forças Armadas poderiam pegar uma urna, sem autorização do TSE ou qualquer instância judicial, para realizar “testes de integridade”.
A lista de operadores da Frente continua com o obscuro senador Chico Rodrigues, do PSB de Roraima. Isso mesmo, do Partido Socialista Brasileiro. O parlamentar é figurinha conhecida em investigações sobre desvio de recursos destinados ao combate à pandemia de COVID-19 em Roraima.
Em outubro de 2020, durante a Operação Desvid-19, a Polícia Federal encontrou R$ 33 mil escondidos na cueca do senador, durante uma busca na residência dele. A operação investigava o desvio de aproximadamente R$ 20 milhões em emendas parlamentares destinadas à Secretaria de Saúde de Roraima para o enfrentamento da pandemia.
Na época, Chico Rodrigues era vice-líder do governo Bolsonaro no Senado e acabou afastado do cargo por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), por 90 dias. Posteriormente, ele solicitou uma licença de 121 dias do mandato, na espera da poeira baixar. Em agosto de 2021, a PF o indiciou pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro, advocacia administrativa e obstrução de investigação. Os investigadores anotaram que Rodrigues atuava como um gestor paralelo na Secretaria de Saúde de Roraima. Dessa forma, influenciava diretamente na liberação de recursos e favorecia empresas ligadas a familiares dele.
Em junho de 2023, o Conselho de Ética do Senado abriu um processo disciplinar contra Chico Rodrigues, após representações dos partidos Rede Sustentabilidade e Cidadania. O relator designado inicialmente foi o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Mas, em julho de 2024, Rodrigues foi tocado pela sorte: o novo relator sorteado foi ninguém menos que Davi Alcolumbre, principal entusiasta da Frente para exploração de petróleo na Foz do Amazonas.
A insistência de Lula em passar por cima do Ibama vem, justamente, dos acordos feitos entre o presidente da República e o homem forte do Amapá. Até o momento, o processo contra Chico Rodrigues continua parado.
O senador Mecias de Jesus, assim mesmo, com “c”, do Republicanos de Roraima, é o último, mas não menos notável, nome da lista de operadores da Frente. Entre todos, é o que tem a ficha mais completa. Em janeiro de 2022, a Justiça Federal condenou Mecias no chamado “Escândalo dos Gafanhotos”, um esquema de inclusão de servidores fantasmas na folha de pagamento do governo de Roraima. O senador foi condenado a restituir, aproximadamente, R$ 1,9 milhão aos cofres públicos e teve os direitos políticos suspensos por cinco anos. Apesar da condenação, Mecias permanece no cargo por causa de recursos judiciais pendentes que impedem a execução imediata da sentença.
Em maio de 2024, a Polícia Federal solicitou ao STF a abertura de investigação contra o senador por suspeita de compra de votos durante a eleição suplementar no município de Alto Alegre, Roraima. Na ocasião, um motorista ligado ao parlamentar foi flagrado com R$ 50 mil em espécie escondidos no corpo. A PF afirmou haver “fortes indícios” de que o dinheiro pertencia a Mecias de Jesus. O senador negou irregularidades, alegando que os valores se destinavam a despesas pessoais.
Outro caso interessante: em 2019, a Voare, única empresa aérea autorizada a operar na região Yanomami, em Roraima, enviou um ofício ao então presidente Jair Bolsonaro no qual denunciava uma série de irregularidades ligadas a Mecias de Jesus. No ofício, o senador é acusado de pedir propina para manter o contrato da companhia com o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y). A denúncia também mencionava achaque e fraude em licitação envolvendo o coordenador do DSEI-Y, nomeado por ele. O caso acabou arquivado pelo Tribunal de Contas da União e pela Corregedoria do Ministério da Saúde.
É com o apoio dessa trupe, disposto a passar por cima das resoluções técnicas do Ibama, que o governo pretende viabilizar a exploração de petróleo na Margem Equatorial da Foz do Rio Amazonas. Os riscos apontados envolvem o derramamento de petróleo em alto-mar, uma fatalidade capaz prejudicar a fauna e a flora marinhas, e um possível deslocamento do óleo para águas territoriais da Guiana Francesa.
Embora possa apelar para uma decisão exclusivamente política, parece temerário ignorar avaliações técnicas sobre a sensibilidade ambiental da região, a dinâmica das águas na Margem Equatorial e o modo de vida das comunidades locais. Isso tudo em meio a um cenário de emergência climática e às vésperas da 23ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), a COP 23, ser realizada em Belém do Pará.
A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, tem adotado uma postura cautelosa em relação à exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. Defende a necessidade de rigor nos processos de licenciamento ambiental e a autonomia dos órgãos competentes, ou seja, obediência aos pareceres técnicos do Ibama. Ao que parece, Marina e Lula deverão entrar, em breve, numa nova cerimônia do adeus.
Imagem: IA