A solidão, o mal do século 21
Na sociologia, é comum se afirmar que o século 20 foi o século das multidões. A frase de efeito se baseia na constatação do acelerado processo de urbanização. Moradores de descampados em que uma residência rural estava “léguas de distância” passaram a residir em ruas estreitas onde uma casa estava geminada a outra.
O século das multidões foi o século das grandes manifestações de massas, das greves gigantescas, das ações de tomada das ruas, do populismo que quer representar os esquecidos pelas cidades.
E, então, chegamos ao século 21. Um século conectado às redes sociais via internet que evaporou o sentido de pertencimento. Pertencer apenas em pequenos coletivos e grupos fechados. E, mesmo assim, com imensa desconfiança em relação ao “parceiro virtual” porque pode ser um avatar ou porque este parceiro não pensa duas vezes para humilhar a todos e a ridicularizar até quem pensava ser seu companheiro de jornada.
O mundo ficou violento, doentiamente agressivo, marcado pela necessidade de diferenciação e exposição, até mesmo defesa. Não é por outro motivo que os “incels” criaram uma teoria da conspiração sugerindo que as mulheres que eles temem nasceram para humilhá-los. Assim, antes da humilhação, a eliminação do outro que imagino ser meu inimigo.
Uma pesquisa do ONS, órgão oficial de estatísticas do Reino Unido, publicada em novembro, revelou que 33% dos britânicos de 16 a 29 anos relataram sentir solidão “com frequência, sempre ou às vezes”, sendo a taxa mais alta entre todas as faixas etárias. Entre pessoas com mais de 70 anos, 17% disseram o mesmo.
Os mais jovens se sentem desamparados, jogados neste mundo de guerras e cancelamentos virtuais.
Há indícios de que, em alguns países, entre o grupo mais idoso, de pessoas com mais de 85 anos, a solidão aumenta de forma acentuada e pode se igualar à registrada entre jovens de 18 a 30 anos. Ainda assim, analistas afirmam que, na maior parte das pesquisas, os jovens adultos se destacam como um grupo particularmente isolado.
As defesas que são erigidas vão dos “hikikomori” (jovens japoneses que nunca saem de seus quartos) aos incels já citados aqui. Vou insistir nos incels porque a cultura da violência está nas redes sociais. Basta você contrariar um jovem que postou uma bobagem no X para atrair uma legião de “amigos” que vasculham sua vida, suas postagens, postam prints e fazem as interpretações mais malucas para provocarem seu cancelamento. Não têm qualquer humor ou sacada inteligente porque vivem num mundo excessivamente agressivo. Eles agem por medo, não porque são realmente agressivos.
Incels vem de “involuntary celibates” ou celibatários involuntários. Formam uma cultura de defesa, formada majoritariamente por homens jovens que afirmam não conseguir encontrar parceiras, apesar de desejarem. Este é o ponto. Se percebem incompetentes para o mundo afetivo com o sexo feminino. A defesa começa com ataques misóginos, muito parecidos com os ataques racistas que ocorrem na Europa, aparentemente motivados inicialmente pela defesa do emprego e que evoluem para o ataque à cultura, à religião e até os hábitos de higiene pessoal (no caso do ataque aos brasileiros, nosso hábito de tomar muitos banhos). Os incels responsabilizam as mulheres por suas frustrações.
Criam uma descrição hostil das mulheres, transitando entre sua tendência à maldade até a identificação de suas futilidades, se importando mais com a aparência que com a essência dos seres humanos. Uns, mais revoltados com sua insignificância, reivindicam o “direito” ao afeto, sentindo-se injustiçados. Outros, classificam a humanidade entre “Chads” (homens atraentes e sexualmente ativos) e “Stacys” (mulheres bonitas que eles acreditam estarem fora do alcance dos incels). Esta é a base do enredo da minissérie britânica Adolescência, de 2025.
Incels gostam de espaços fechados para dispararem sua amargura. Se possível, em “porões virtuais”. Afinal, seu sentimento é de medo e humilhação. Assim frequentam fóruns online como Reddit e 4chan. Lá, disseminam suas teorias típicas do mundo imaginário de adolescentes onde sugerem que suas desventuras se relacionam à determinação biológica, que só poderia ser reequilibrada com a radicalização de seus atos o que, muitas vezes, descamba para atos violentos, crimes e até ações terroristas. Novamente, a minissérie britânica dá exemplos desta espiral violenta.
A solidão afeta mais os jovens em função do processo em curso de amadurecimento, incluindo o amadurecimento físico. Com efeito, o Córtex Pré-Frontal, responsável pelo controle de impulsos, tomada de decisão, planejamento de longo prazo, avaliação de riscos e regulação de emoções, só começa a prevalecer na tomada de decisões aos 19 anos de idade, se completando aos 25. Aliás, esta é a base científica para o Estatuto da Criança e do Adolescente definir a data limite desta fase da vida até os 18 anos.
Todos nós somos afetados pela solidão deste século, mas a adolescência e a juventude não têm por onde escapar. Não têm um currículo para olhar e perceber que têm valor. Entre 12 e 17 anos de idade, os adolescentes tendem a se fechar em pares de iguais, fartamente estudados na antropologia e psicologia. Somente aos 17 anos, alguns retornam a se relacionar com alguma entrega à sua família. A oscilação comportamental e as buscas são típicas desta etapa da vida humana.
O fato é que este século é, até aqui, marcado pela solidão em meio à multidão. Uma multidão que assusta e não acolhe. Richard Sennett já pressentia o que estava em curso, no final do século passado, e denominou de “ideologia da intimidade”, a reclusão em espaços de relações mais intimistas.
Enfim, a história nunca é linear. É como um drible de Garrincha: quando parece que vai para um lado, ocorre um corte e escapa para o lado oposto.
A multidão gerou sofrimento.