As lições do que aconteceu na Argentina
A ressurreição de Javier Milei na Argentina põe muita gente em situação desconfortável. Os peronistas, as esquerdas brasileiras, o jornalismo em geral, os cientistas políticos e os adivinhadores. Todos erraram, como observadores ou como torcedores.
A vitória de Milei parece tornar sem sentido uma sequência de fatos caóticos para o fascismo, desde 7 de setembro. Naquele dia 7, o peronismo venceu a eleição legislativa estadual, para a província de Buenos Aires, com 13% de vantagem em relação às forças reunidas em torno do Liberdade Avança de Milei.
Foi o que chamam de vitória avassaladora. Seria o primeiro sinal do começo do fim de Milei. Essa é uma lista básica do que aconteceu a partir daquele dia 7.
O governo passou a ter derrotas importantes e inéditas no Congresso. Governadores que apoiavam a Casa Rosada ameaçaram debandar. Os jornais das corporações, Nación e Clarín, decidiram produzir manchetes contra Milei.
Agravou-se o desentendimento entre Milei e sua vice, Victoria Villarruel. Os dados da economia pioraram, com a certeza de que o país não voltaria a crescer no curto prazo e com o aumento da pobreza e da penúria dos aposentados.
Voltaram a ser notícia as investigações em torno de Milei e da irmã Karina por envolvimento com a criação de criptomoeda e o recebimento de propinas. O dólar ameaçou disparar e passou a ser contido por intervenções do governo.
Empresas e pessoas comuns abandonavam o peso. Milei viajou aos Estados Unidos em busca de socorro de Trump. As ações das empresas argentinas despencavam e até os jornalões de Buenos Aires especulavam sobre o tempo de duração do governo.
Cristina Kirchner, em prisão domiciliar, foi para a sacada do seu apartamento no bairro Constitución, e Axel Kicillof, governador da província de Buenos Aires, passou a ser visto como o cara que iria enfrentar Milei em 2027, se ele resistisse até lá.
A eleição parlamentar de domingo arrebentou essa linha de tempo. E agora peronistas, cientistas, jornalistas, as esquerdas brasileiras, adivinhos e chutadores em geral voltam a especular sobre o que aconteceu e pode acontecer a partir dessa segunda-feira.
O que aconteceu domingo? Foi a abstenção recorde de 34%? Foi a ajuda de Trump? A presença de banqueiros americanos em Buenos Aires às vésperas da eleição? A arrogância peronista?
O que aconteceu, se uma pesquisa na semana da eleição, do Instituto AtlasIntel, mostrou que que 55,7% dos argentinos reprovam o governo? Como Milei venceu se não ofereceu nada de concreto ao povo?
Milei venceu porque reconquistou às pressas parte da base sustentada por governadores, ou porque se reaproximou da velha direita de Macri? Como Milei venceu se é sabotado até pela vice Victoria Villarruel e tem sua imagem cada vez mais associada a vigarices?
Milei pode ter vencido até na província de Buenos Aires por ter criado a expectativa de que vai salvar o peso e manter a inflação mais ou menos sob controle. É o que atormenta os argentinos há mais de 30 anos: o peso inconfiável e a inflação alta. Milei prometeu, com o aval de Trump, que haverá dólares para todos.
Mas todas as respostas possíveis precisam passar pelo elementar: Milei venceu porque está no poder. Porque os argentinos, mesmo constrangidos e empobrecidos, decidiram renovar a aposta e oferecer base parlamentar ao sujeito que elegeram há apenas um ano e 11 meses?
Podem dizer que as eleições parlamentares são uma coisa e a eleição para presidente é outra e que os candidatos a deputado e senador explicam a vitória da direita por suas virtudes políticas pessoais.
Mas os candidatos na ponta das listas apresentadas aos eleitores são a cara de Milei, que lidera um partido com somente quatro anos. O macrismo é apenas um apêndice dessa estrutura assumidamente fascista, que se apresentava como anticasta e disruptiva.
Milei venceu porque provou que domina e ainda tem a fidelidade dessa base política de extrema direita. E domina porque está no poder e se dedicou a todos os esforços para mantê-lo.
Os estagiários da Casa Rosada sabem. Tem mais chances de vencer, mesmo em situações caóticas, quem está no poder. Como Bolsonaro quase venceu em 2022, enquanto as pesquisas apontavam Lula com vitória folgada.
A lição da Argentina, que Lula sabe muito antes de Cristina, de Macri e de Milei, é essa: um governante precisa ser muito medíocre, como Macri foi em 2019, para não conseguir vencer uma tentativa de eleição. Vale para o que aconteceu na Argentina na eleição parlamentar de meio de mandato e vale principalmente para uma reeleição.
A possibilidade de vitória favorece quem está no poder. É o governante, com tudo à sua disposição, quem está com a bola e quem bate o pênalti. A possibilidade de reeleição é quase uma ordem: reeleja-se.
Milei, com o socorro de Trump, virou o jogo na última hora, mas só conseguiu porque agarrou-se ao poder, mesmo que ele e o país estejam caindo aos pedaços. Numa eleição parlamentar, antecipou o segundo mandato e voltou a ser forte para 2027.
É uma lição que agora vem também da 5° Série argentina. Por isso Lula será imbatível em 2026. Como aconteceu com ele em 2006 e com Dilma em 2014.
- O presidente argentino, Javier Milei, celebra vitória legislativa nas eleições de outubro. Foto: Reuters.