
As manifestações democráticas voltaram … mas, diferentes

Foram manifestações enormes. A USP cravou 42 mil em São Paulo. Algo similar à manifestação do Rio de Janeiro. As duas capitais vêm servindo de base para avaliar a força dos protestos de rua no país.
Acontece que elas ocorreram em 27 capitais: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória, Brasília, Salvador, João Pessoa, Maceió, Natal, Teresina, Recife, Aracaju, Belém, Manaus, Cuiabá, Goiânia, Campo Grande, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Macapá, São Luís, Fortaleza, Rio Branco, Porto Velho, Boa Vista e Palmas.
Os principais veículos de comunicação do país avaliaram que foram manifestações muito superiores às do campo bolsonarista. Um deles afirmou que conseguiram mudar a narrativa em curso sobre a anistia e a propalada “pacificação do país”. O Brasil, contudo, teria revelado que não quer esta modalidade de pacificação. Tudo, menos anistia para criminosos.
As manifestações registraram outras mudanças importantes na trajetória de protestos de rua dos últimos anos. Uma delas é o retorno de artistas e de lideranças médias e de base da igreja católica. Neste século, nada tão parecido como o que foi registrado neste domingo, dia 21 de setembro. Algo similar ocorreu na Campanha das Diretas e no final do século 20.
Este retorno dos artistas e igreja católica se deve, em parte, porque as manifestações do domingo não foram lideradas pelo governo federal e pelo PT. Assim, não polarizaram com o bolsonarismo, mas pressionaram o Centrão. Polarizar com o bolsonarismo, nos últimos anos, gerou uma avalanche de ataques contra religiosos e artistas progressistas. Ontem, o bolsonarismo reclamou da presença deles nas manifestações, mas ficou no lamento.
Algo alterou a lógica e fez a sisudez que tempos atrás plasmava nas articulações da esquerda brasileira cair no colo do bolsonarismo. O bolsonarismo faz caretas e esbraveja. Ontem, ao contrário, apareciam camisetas coloridas, bandeiras do Brasil, gente muito idosa e gente jovem, muitas cidades além do eixo RJ-SP. Uma paisagem distinta do que ocorria desde 2015.
O psicólogo e pesquisador de redes sociais espanholas Javier Toret desenvolveu uma tese sobre a escalada das manifestações populares da década de 2010: elas articulavam as redes sociais com manifestações de rua e televisão. Em camadas.
As manifestações do domingo parecem ter seguido parte deste script sugerido por Toret. As convocatórias se espalharam pelas redes sociais adotando um layout específico e centrado no chamamento de artistas, a começar por Caetano Veloso, seguido por Daniela Mercury e Wagner Moura. Evidentemente que tal estratégia furou a bolha. Somente no “Ele Não” as mulheres da minha família saíram às ruas como ontem. Vizinhas combinaram sair todas juntas. Houve uma conexão emocional com a agenda nitidamente política. Algo que tantos estudos indicam como importante para mobilizar a indignação capturada pelas redes sociais através da cultura. O que alguns denominam de metapolítica.
Metapolítica é um discurso que tangencia a política, sem falar seu nome.
Normalmente, captura a atenção do receptor através de um interesse cultural ou até de vestimenta ou esporte. Há paralelo com o conceito de hegemonia de Gramsci, o tal “cimento” que une muitos interesses distintos num projeto em que todos se veem, ao menos em parte. A noção mais recente do uso – e abuso – do conceito de metapolítica veio no final dos anos sessenta, manipulado por um grupo cultural francês conhecido como “Nouvelle Droite”, uma corrente nacional-europeia que surgiu na França, em 1969, com a fundação do Groupement de recherche et d’études pour la civilisation européenne (GRECE), um think tank. Para esta tendência, metapolítica seria “o domínio dos valores que não se enquadram no âmbito da política, no sentido tradicional do termo, mas que incidem diretamente na constância ou ausência do consenso social regido pela política”.
A extrema-direita do continente americano decidiu denominar tudo isso de “guerra cultural”. Afinal, tudo para eles se resume a uma guerra.
Ontem, depois de tanto tempo, o campo progressista tupiniquim soube usar com habilidade a metapolítica. Mais política que o uso comum dos extremistas de direita, é verdade. Mesmo assim, soube furar a bolha, o feito mais importante de ontem.
Há duas questões importantes, além das descritas acima, que acredito merecerem atenção.
A primeira é que a dinâmica política do século 21 é tão alucinada e movida à mudança de um clique na tela do smartphone (há cálculos que indicam que tocamos 3 mil vezes por dia nas telas de um celular) que as decisões de líderes políticos são cada vez mais arriscadas. Vejam o caso do desmantelamento da autoridade de Hugo Motta, mas também a derrapagem de Paulinho da Força e dos 12 deputados petistas e mais alguns do PSB e PDT que estão sendo massacrados por suas bases políticas e pelas redes sociais.
A última questão que gostaria de destacar é o risco da banalização das manifestações. Desde a ascensão do bolsonarismo, as manifestações começaram a ser medidas em termos de quantidade de pessoas que saem às ruas. A polarização, assim, passa a induzir uma leitura dicotômica e quantitativa entre manifestações. O problema sociológico e político é que tal medida transforma uma demanda popular em grito no vazio.
A imprensa e as redes sociais ficam aguardando sinais de quantas pessoas estavam naquele ou noutro protesto de rua. E ninguém quer ouvir as várias vozes. Em outras palavras, transforma grupos de interesse distintos em multidão.
O que se viu ontem foi justamente um mosaico. Por este motivo que furou a bolha dos protestos do campo progressista. Porém, se medirmos o que ocorreu ontem pelo número de pessoas, deixaremos de escutar as ruas. Chegaremos à conclusão de que tudo não passou de manifestações equivalentes, entre bolsonaristas e lulistas, quando o que menos ocorreu ontem foi isso.
- Imagem gerada em IA