Brasileira decide se autodeportar de Portugal após endurecimento de leis migratórias
Há 38 anos, a paulistana Lilian Kopke escolheu Portugal para estudar música. Mãe de dois filhos nascidos no país, ela se tornou mais uma vítima das inúmeras falhas do Estado português com os trabalhadores imigrantes.
Em 1987, a paulistana ingressou na Escola Artística de Música do Conservatório Nacional, onde, mais tarde, se tornaria professora, chegando a ocupar o cargo de diretora da instituição.
Lilian conta que poderia ter solicitado a nacionalidade portuguesa, mas, durante décadas, achou que “estava tudo certo”. Além disso, o Tratado de Porto Seguro, assinado no ano 2000, dava aos brasileiros que vivem em Portugal os direitos estabelecidos no Estatuto de Igualdade, que garante a cidadãos de ambos os países os mesmos direitos e deveres quando residem no território do outro, incluindo o acesso a trabalho, educação, saúde e também o direito de pedir o Cartão de Cidadão português.
Entretanto, a sua chegada, há mais de três décadas, foi marcada por obstáculos idênticos aos que os imigrantes enfrentam hoje com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA). O primeiro visto de estudante, pedido com um ano de antecedência no Consulado de São Paulo, não saiu a tempo.
“Eu vim mesmo só com o passaporte, sem visto”, recorda. Ao tentar regularizar-se, deparou-se com exigências que a fizeram ter que recomeçar todo o processo mais de uma vez. “Só consegui ficar totalmente regular depois de dois anos e meio. O que me causa espanto é que essa situação é a mesma que muitos de nós vivemos agora”, pontua.
Lilian também lembra do doloroso processo que seu filho, um atleta de alto rendimento, teve que enfrentar ao ser convocado para representar Portugal em uma competição. Apesar de ter nascido e crescido no país, ele era legalmente brasileiro, já que na época a nacionalidade não era atribuída de forma automática a quem nascia em território português.
“Lembro que ele chorava e dizia ser português, repetindo que nunca havia morado no Brasil e que era daqui”, recorda a mãe.
Foi este conflito de identidade que a obrigou a tratar da nacionalidade dos filhos, enquanto adiava o seu próprio processo. “Cansei de ouvir que os brasileiros vêm para cá apenas para obter cidadania, além de insultos como ‘volta para a sua terra’, etc. Nunca pedi a nacionalidade. Eu só queria viver em paz, usufruindo dos direitos que o estatuto me garante. Sou brasileira e pronto”, explicou.
Jogada na ilegalidade
A situação de Lilian Kopke foi se complicando e acabou se deteriorando nos últimos três anos. Com o título de residência vencido em 15 de janeiro de 2024, a professora se viu, como milhares de brasileiros, em uma situação de vulnerabilidade devido aos sucessivos atrasos da AIMA. O desespero aumentou no momento em que procurou a agência para renovar a autorização, processo que fazia, com certa tranquilidade, de cinco em cinco anos.
“Já fiz o pedido três vezes, e a resposta que eles me dão é a de que não encontram a minha residência. Eu não entendo isso, pois moro aqui desde 1987”, explicou.
A falta de resposta do serviço de migrações deixou Lilian sob estresse e em estado de alerta constante. “Estou mesmo muito preocupada, porque, de repente, fiquei sem nenhum documento, ao ponto do banco me mandar um e-mail dizendo que eu ficaria sem acesso a minha conta”, disse.
Esta instabilidade burocrática também se soma a uma experiência profunda de discriminação. Kopke relata que a xenofobia causou “danos muito sérios” em sua vida. Apesar de mover um processo judicial contra um professor português que, de acordo com ela, agiu de forma preconceituosa, Lilian se sente em desvantagem. “Uma vez que a xenofobia aqui não é crime, quando chega nessa parte, é como se eu entrasse aos 45 minutos finais de uma partida com o time adversário já ganhando de dois a zero”.
A situação dramática fez com que a brasileira ficasse cada vez mais deprimida, ao ponto de optar pelo isolamento. “Hoje, não falo mais sobre o assunto, e tento sair o mínimo possível de casa”.
Após décadas a lecionar na Escola Artística de Música do Conservatório Nacional, Lilian tomou a decisão de deixar o país. “Vou-me embora. Já não me sinto segura em Portugal. Quando você não se sente protegida pelo Estado, nem pelo Poder Judiciário, quando não há um canal eficiente de atendimento, já não se pode fazer mais nada”, lamenta.
Apesar do carinho pelos alunos e pela profissão, Lilian Kopke afirma que o cansaço superou a vontade de permanecer no país que diz ainda gostar, apesar de tudo. “Eu adoro meus alunos, e acho que eles também devem ter a mesma opinião sobre mim”. Ela conta ainda que a sua família no Brasil não compreende totalmente a sua situação, e que a única defesa que encontrou aqui foi o silêncio. “É o meu escudo, pois se eu não falo, não abro a boca, ninguém percebe de onde eu sou”.
Lei anti-imigração em vigor
A nova Lei dos Estrangeiros aprovada dia 16 de outubro pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e publicada no Diário Oficial nesta quinta-feira (23), estabeleceu restrições para a conversão de vistos de turista em autorizações de residência, além de instituir normas mais rígidas para processos de união familiar, vistos de estudo e trabalho, e maior dificuldade em processos de contestação jurídica.
A proposta foi aprovada com o apoio do Chega e da Iniciativa Liberal. Os partidos de centro e de esquerda votaram contra a medida. Vale lembrar que a primeira versão da proposta havia sido rejeitada pelo Tribunal Constitucional.

As novas regras alteram significativamente o acesso à residência regular para milhares de imigrantes, incluindo brasileiros, que representam hoje a maior comunidade estrangeira no país. Antigamente, o processo para permanecer em Portugal era mais flexível.
Esta ofensiva legislativa, popularmente conhecida como “pacote anti-imigração”, tem tido influência direta devido à ascensão da extrema direita no Parlamento, que, neste tema, tem sido respaldada pelo governo de direita do primeiro-ministro Luís Montenegro (Partido Social Democrata).
Para a advogada Erica Acosta, o dia 16 de outubro representou um retrocesso na democracia portuguesa. A nova lei, que limita os fluxos migratórios, endurece o reagrupamento familiar e restringe o acesso à residência para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), foi classificada por ela não como uma decisão neutra, mas política.
“Como advogada, imigrante e defensora dos direitos humanos, considero esta promulgação um ataque direto à dignidade humana e à própria Constituição portuguesa”, declarou a especialista em Direito das Migrações.
Lei da nacionalidade aprovada com apoio da extrema direita
Nesta terça-feira (28/10), a proposta de revisão da lei da nacionalidade foi aprovada no Parlamento. Os partidos de direita e extrema direita (PSD, IL, CDS, JPP e Chega) somaram 157 votos a favor, contra 64 das legendas à esquerda (PCP, BE, Livre, PAN e PS). O novo diploma, que tem sido alvo de críticas por possíveis inconstitucionalidades, aguarda agora a sanção do Presidente da República.
O apoio da extrema direita, representada pelo Chega, também foi decisivo para a aprovação das alterações. A nova lei aumenta o período mínimo de residência legal para atribuição da nacionalidade. Para imigrantes oriundos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e de países membros da União Europeia, o prazo sobe de cinco para sete anos, enquanto para os demais estrangeiros a exigência mínima é de uma década de residência no país, mediante comprovação de meios de subsistência.
A deputada do Chega, Cristina Rodrigues, disse que hoje é “um grande dia para os portugueses que têm sangue português nas veias”, fazendo ainda ataques diretos às associações de imigrantes que atuam no país. Para o primeiro-ministro, Luís Montenegro (PSD), a aprovação afirma a soberania e a coesão da identidade nacional. “Não queremos portugueses de ocasião”, disse aos jornalistas logo após a votação.
Entre as propostas da extrema direita incluídas e aprovadas no texto final, está a perda da nacionalidade em situações que comprovem a entrega de “documentação fraudulenta” e para aqueles que cometerem crimes graves.
- Lilian Kopke vive em Portugal desde 1987 e é mãe de dois filhos portugueses. Foto: Arquivo pessoal
* Publicada também no Opera Mundi