CIX: a govtech apoiada por bolsonaristas que privatizam serviços prestados por estatais
A CIX Citizen Experience, antigo Shopping do Cidadão, é uma govtech que conseguiu a façanha de ser aceita em dois mundos políticos distintos e que deverão ser eternamente antagônicos: no Governo Lula e no Governo Tarcisio de Freitas (SP), futuros adversários na campanha presidencial do ano que vem. A razão para agradar a gregos e troianos nada tem a ver com a sua habilitação técnica mas, sim, a possibilidade dela levar para a iniciativa privada serviços até então executados pelas estatais, o sonho acalentado por ex-dirigentes de TI bolsonaristas que ocuparam o Serpro e agora estão na Prodesp, em São Paulo.
No Serpro, a CIX mantém o negócio com o apoio de bolsonaristas que ainda ocupam postos de chefia na estatal, como André de Cesero (lado direito da foto principal), atualmente no cargo de assessor especial do presidente Alexandre Amorim. Ele e alguns superintendentes da área de negócios da empresa continuam fiéis aos ex-diretores que controlaram o Serpro até a chegada do Governo Lula.
São eles: Gileno Gurjão Barreto (esquerda da foto principal), atual presidente da Prodesp e Caio Paes de Andrade (gravata amarela), que hoje atua como secretário para a área digital do Governo Tarcísio de Freitas.
A Prodesp ainda conta com as presenças de outros dois colaboradores do Governo Bolsonaro no Serpro: André Sucupira, que assumiu a área jurídica da estatal estadual. Sucupira é funcionário de carreira do Serpro, mas foi cedido para a Prodesp tão logo ficou definida as eleições presidenciais e Lula venceu a disputa contra Bolsonaro.
Junto com Sucupira a Prodesp conta ainda com Ricardo de Moura Jucá, atual diretor de Inovação, outro funcionário de carreira do Serpro cedido para a estatal paulista. Ele foi o principal executor de todo o processo que levou à contratação da CIX pelo Serpro.
Poupatempo
A privatização do Poupatempo – em que a CIX sagrou-se vencedora da concorrência através de um consórcio empresarial no qual ela é a cabeça para executar o serviço – está com o processo encalhado desde outubro deste ano por uma decisão da 13ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, que impede a assinatura do contrato de concessão.
O valor de contrato é estimado em mais de R$ 3 bilhões, segundo denúncia feita ao Ministério Público, que instaurou um inquérito civil com o objetivo de apurar suspeitas de que o programa Poupatempo estaria sofrendo um desmonte no Governo Tarcísio de Freitas, com a intenção de justificar a privatização do serviço. Quando será retomado ninguém sabe informar, pois a investigação do Ministério Público e do Tribunal de Contas do estado levará tempo para apurar todo o processo.
Serpro Figital
No Serpro a presença da CIX Citizen Experience é verificada desde 2022, quando ela ainda tinha como razão social o nome “Shopping do Cidadão”. Foi a grande vencedora de um chamamento público Nº 0432/2024 para a escolha de “parceiro” para desenvolvimento de uma nova “solução que integra canais digitais e presenciais para tornar o acesso a serviços públicos mais ágil e inclusivo”, denominado Serpro Figital.
Todo o processo além de guardar similaridade com o serviço Poupatempo, tem cara de “jogo de cartas marcadas” para favorecer a CIX. A começar pelo fato dela ter sido a única a manter intensas reuniões antes da realização do certame: um total de 13 reuniões entre 2022 e 2023, que antecederam o prazo marcado pelo Serpro para receber as propostas das empresas que tivessem interesse em disputar a parceria: 10 de julho de 2024.
Apenas uma empresa chegou à essa fase do certame, entregando uma proposta de preço que é desconhecida na documentação pública que justifica a transparência desse processo: a CIX Citizen Experience, antiga Shopping do Cidadão, tornou-se vencedora do chamamento público 0432/2024 e assinou o contrato no dia 2 de outubro daquele ano.
Preparação
Supostamente o primeiro contato da CIX Citizen Experience – ainda com o nome Shopping do Cidadão – e a direção do Serpro, ocorreu no dia 10 de março de 2022, durante o Governo Bolsonaro.
O então Secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, Caio Mario Paes de Andrade, pediu uma vídeoconferência com o então presidente do Serpro, Gileno Gurjão Barreto, para apresentar o presidente do Shopping do Cidadão – atual CIX – Sérgio Antonio Rodrigues.
A videoconferência teve como pauta “Assuntos Institucionais”. Ou seja, o empresário Sérgio Rodrigues ganhou o privilégio de paralisar as agendas de trabalho de dois executivos do governo para fazer “relações institucionais”. A partir dali ficou claro que passou a ser desenhado junto com ele, um novo produto com cara de desenvolvido pela estatal, mas que seria um jogo de cartas marcadas com empresa privada que assumiria a condição de “parceira de negócios” com o Serpro.
Após este encontro, foi dado o ponta-pé inicial para uma série de tratativas que levariam à CIX Citizen Experience à condição de “parceira” do Serpro. Isso começou no dia 5 de abril de 2022, quando o empresário foi encaminhado para uma reunião com o então diretor de Negócios, Governos e Mercados, Andre de Cesero.
A reunião foi presencial e tratada como “alinhamentos para evolução no programa GOV.BR”. Constam as presenças de três funcionários do Serpro: Ricardo Cezar Jucá, Alexandre Ávila, Elana Oliveira de Matos Sousa. Do lado da empresa, além do presidente Sérgio Rodrigues, estiveram presentes o diretor Plinio Ripari e os colaboradores Vinícius Silva e Alessandro Coutinho.
Depois desse primeiro “alinhamento”, mais três reuniões ocorreram em 2022. Todas comandadas pelo superintendente Ricardo de Moura Jucá, que assumiu o controle da escolha da CIX, praticamente coordenando a maioria das reuniões que antecederam o certame. Em duas dessas reuniões também participou o então diretor Jurídico e de Gestão de Riscos do Serpro, André Sucupira.
Jucá foi premiado dentro do Serpro depois da operação de parceria com o Shopping do Cidadão (CIX). A estatal já estava em processo de transição do Governo Bolsonaro para o Governo Lula. Isso acabou gerando uma debandada na diretoria do Serpro. O presidente, Gileno Gurjão Barreto e o diretor Jurídico, André Sucupira, migraram imediatamente para a Prodesp. Já o então diretor de Operações, Antonino Guerra, assumiu a direção do Detran-SP.
Ele permaneceu no Serpro executando os detalhes da contratação da CIX e chegou a assumir a interinidade na presidência da empresa. Um fato inédito para um funcionário que até então só tinha chegado ao posto de Superintendente. Após a virada dos governos Bolsonaro/Lula o Superintendente Jucá também migrou para a Prodesp e lá assumiu a diretoria de Inovação. Com a saída de Jucá, quem ficou na estatal encarregado de continuar a implantação do Serpro Figital foi Andre de Cesero. Ele perdeu a diretoria que tinha no Governo Bolsonaro, mas foi agraciado com um cargo de assessor pelo presidente Alexandre Amorim, em pleno Governo Lula.
“Parceira”
Um dado chama a atenção nas agendas do Serpro relativas aos encontros com a CIX Citizen Experience. As 13 reuniões realizadas antes da concorrência pública, sempre tiveram como pauta das conversas o uso do termo “parceria”. Ou seja, dois anos antes de ser realizado um chamamento público para escolha da empresa para prestar o serviço, o Serpro já tratava o Shopping do Cidadão (leia-se: CIX Citizen Experience) como “parceira”. Um privilégio que outras empresas interessadas no negócio não tiveram.
Na primeira reunião realizada já no Governo Lula, em 13 fevereiro de 2023, Ricardo de Moura Jucá comandou o encontro como presidente interino do Serpro. A pauta do encontro foi definida como sendo a “apresentação do projeto”.
Como o Serpro tinha tanta certeza em fevereiro de 2023 de que a CIX Citizen Experience seria a “parceira” de um projeto, cujo chamamento público para a escolha de empresa somente ocorreria em 10 de julho de 2024?
Omissão? Interesse?
O mais estranho dessas tratativas diretas com a empresa privada, que tinha interesse em disputar um contrato, foi que o Serpro continuou agindo como se nada tivesse ocorrido entre 2022 e 2023 em relação à mudança de governo. A direção que entrou em janeiro de 2023 (Governo Lula) simplesmente deixou o projeto continuar a caminhar, sem sequer indagar ou estranhar o fato de um edital estar sendo construído diretamente com uma empresa privada, cerca de dois anos antes da realização do certame.
O projeto somente continuou, porque ficou evidente que teve a anuência do novo presidente que acabara de assumir o comando do Serpro: Alexandre Amorim. Ele, inclusive, manteve duas reuniões com executivos da CIX Citizen Experience ( Shopping Cidadão), de acordo com as suas agendas de atividades na estatal.
Teve tempo para apurar melhor essa história, por exemplo, quando participou no dia 20 de abril de 2023 de uma reunião com o executivo Alê Coutinho, da empresa CIX (Shopping Cidadão). Na pauta o assunto era “parcerias”.
O encontro também teve a participação do diretor jurídico, Alexandre Brandão Henriques Maimoni, outro que também não se preocupou em questionar o que estaria fazendo uma empresa privada sentada à sua frente discutindo um projeto que sequer foi aprovado ou licitado?
E quem deu a autorização para ela discutir o objeto de um serviço que disputaria em concorrência no mercado?
Um processo com cara de fraudulento estava ocorrendo diante dos olhos do diretor jurídico a 14 meses da realização do chamamento público pelo Serpro. Memo assim, isso não motivou o diretor da estatal a pelo menos questionar se tal procedimento era correto e quem estaria assumindo a responsabilidade caso um organismo de controle batesse às portas da estatal?
Amorim ainda teve uma segunda oportunidade de tentar entender por que o Serpro estava conversando com uma empresa privada para a formação de uma parceria, sem que a estatal sequer já tivesse realizado a concorrência para saber se, de fato, seria ela a vencedora do certame.
No dia 13 de dezembro, junto com o diretor de Negócios da gestão bolsonarista, André de Cesero, recebeu um executivo da CIX Citizen Experience não nominado em sua agenda. O que discutiram ninguém nunca ficará sabendo. Mas a CIX Citizen Experience está prestando serviço no “Serpro Figital”.
Outras possíveis irregularidades
Na documentação que está pública para quem desejar verificar os resultados do chamamento Nº 0432/2024 dá para constatar que há a ausência de um estudo de viabilidade técnica-econômica e de análise comparativa de mercado, apesar da existência de múltiplos fornecedores para prestar o mesmo serviço ebtregue para a CIX Citizen Experience (Valid, Stefanini, Talkdesk, Mutant). Nem tampouco há estudos ou menção sobre riscos inerentes ao negócio, sobretudo na questão da proteção de dados dos cidadãos que usarem os serviços. Essa mesma ausência de estudos no Serpro teria sido constatada também no Poupatempo.
Da mesma forma a empresa, amparada na Lei das Estatais, não informa a estimativa de preço, sob alegação de tentar impedir que haja conluio entre as concorrentes. Porém, a mesma lei determina que a estatal, após assinatura do contrato, divulgue o valor acertado entre as partes. Isso não ocorreu no extrato deste contrato publicado no Diário Oficial da União, no qual o Serpro afirma que “os compromissos financeiros decorrerão das receitas geradas com a comercialização da solução”.
A empresa descumpriu o que determina a legislação de compras, que permite que ela esconda o valor estimado da contratação no edital para evitar fraudes na licitação, mas ordena que, depois de assinado o contrato, seja dada a publicidade dele com todas as informações necessárias como a vigência e o valor contratado.