Colonialismo mental

13 de agosto de 2025, 21:07

Veja a foto que ilustra esse artigo. Me foi enviada por um amigo, não gaúcho, que estava em seu carro, passando por um bairro chique de Caxias do Sul, no “progressista” Rio Grande do Sul – e mexeu com minhas entranhas. Na segunda cidade mais populosa do estado, no segundo turno das eleições 2022, Jair Bolsonaro teve quase 67% dos votos para presidente, contra 33% de Lula. Portanto, seria improvável esperar por aquelas bandas uma casa empinando uma bandeira vermelha do PT, ou alguma com a foice e o martelo cruzados. Como a foto não mostra um consulado partilhado, mas a mansão de um brasileiro, que ostenta, hasteada na frente de sua casa, as bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, lado a lado, vale refletir. Só faltou a bandeira dos confederados escravagistas, que provocaram a Guerra Civil norte-americana.

Não, a onda de bandeirinhas brasileiras amarelas nas janelas, sacadas e varandas de “cidadãos de bem”, e em comícios bolsonaritas, não acabou, nem a usurpação pela extrema-direita acéfala por símbolos nacionais, como a camisa da Seleção Brasileira de Futebol. Mas a extrema-direita está surfando agora em outro modismo. A idiotice do momento é exibir símbolos norte-americanos e trumpistas, que colocou um alvo na testa do Brasil, e de Israel, que adoraria nosso apoio ao massacre de Gaza, e não perdoa o apoio do país à iniciativa da África do Sul de mover uma ação judicial contra Israel por crimes de genocídio contra o povo palestino junto à Corte Internacional de Justiça (CIJ). 

Na secessão “brazilian style”, é o momento histórico dos reacionários participarem de comícios, quando “convocados”, andar de camisetas, hastear bandeiras e exibir símbolos ianques e israelenses. Içar aos céus a bandeira dos Estados Unidos, o país que inventou o tarifaço político, exigindo a absolvição do golpista Jair Bolsonaro – nenhum apreço pessoal de Trump, apenas um fantoche para a atual campanha neocolonialista norte-americana contra governos de esquerda – e o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Donald Trump teve sua capacidade cognitiva capturada pelas grandes corporações de seu país, especialmente os interesses das Big Techs que o financiaram.

E a bandeira de Israel, o país que massacra os palestinos, pratica, como rotina, chacina de crianças e bombardeio de hospitais, na faixa de Gaza e arredores – enquanto o Brasil, mesmo, infelizmente, ainda indeciso sobre cortar relações diplomáticas com o governo do fascista Benjamin Netanyahu, é um dos poucos países que contesta o genocídio. A ponto de Trump citar em seu relatório de Direitos Humanos – direitos humanos e Trump na mesma frase é uma picardia – que o Brasil de Lula pratica o antissemitismo.

Uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos evangélicos no Brasil se tornou comum nos últimos anos, especialmente entre grupos religiosos ligados ao bolsonarismo. Foto: Reuters.

A guerra civil norte-americana dividiu estados, não só pessoas, rachou o país ao meio, e tem consequências sócio-econômicas até hoje. Aconteceu entre 1861 e 1865, entre as regiões Norte e Sul dos EUA. Suas causas giravam em torno das enormes diferenças de modelo de desenvolvimento entre os dois lados. O Norte desempenhava uma economia manufatureira, baseada no cultivo assalariado em pequenas propriedades, e o Sul era escravagista, dependia do modelo de “plantation”, depois terceirizado para outros países.

Por aqui, a secessão “brazilian style” não divide estados – embora o Sul seja nitidamente mais conservador e o Nordeste mais progressista, o que tem sido decisivo nas eleições de Lula. Não somos um país para amadores. Rachado ao meio, como demostram quase todas as pesquisas, temos quem considera uma afronta à nossa soberania o tarifaço de Trump e inaceitável a limpeza étnica em Gaza, e quase igual proporção que venera Trump, o “xerife do planeta” que vai nos salvar do “comunismo”, apoia Netanyahu, boa parte movida pela manipulação de narrativas por ricas igrejas neotencostais, e que se escandaliza com o julgamento do “homem de bem” Bolsonaro, que faz agora juras de amor à democracia,

A interseção entre Israel e o campo neopentecostal no Brasil é notadamente explorada por uma elite religiosa de direita, como a Igreja Catedral do Avivamento, do deputado e pastor Marcos Feliciano, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia, e da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo. O apoio a Israel, por essas denominações, é tratada, na doutrinação de seu rebanho, não apenas como uma questão de alinhamento teológico, mas também uma interpretação escatológica de certas passagens bíblicas, particularmente aquelas relacionadas ao fim dos tempos e ao papel de Israel na consumação dos eventos proféticos.

A ignorância e manipulação da fé alheia pode ser demonstrada em um “modelo de negócios” diferente, só na aparência. Em uma das áreas mais violentas do Rio, funciona o Complexo de Israel – sim, o mome é esse mesmo – com uma enorme bandeira de Israel hasteada no ponto mais visível da comunidade, o Morro dos Macacos, um conjunto de favelas na Zona Norte dominada pelo Terceiro Comando Puro (TCP), facção criminosa do tráfico de drogas que só perde para o Comando Vermelho (CV) em área territorial subjugada.

Joseph Nye Jr.que cunhou a expressão “soft power” para o poder dos EUA de subverter mentes. Foto: Divulgação via Aspen Institute

De um lado, a força do “soft power”, que moldou gerações com a glamourização do “American way of life”, especialmente por meio da indústria do entretenimento – como explicou o já falecido cientista político Joseph Nye Jr., que cunhou a expressão -, de outro a ideologização evangélica, “vendendo” aos crentes a Israel do Antigo Testamento, identificada como Terra Santa abençoada, sem diferenciar do Estado moderno belicista e que pratica a chacina dos palestinos. E à “camisa da seleção” juntaram-se outros símbolos, como a “stars and stripes” (Estrelas e Faixas), codinome patriótico das cores da bandeira dos EUA, e o uso da estrela de David.

Resumindo, de forma simbólica, é como se os filmes de Holywood e o Antigo Testamento fossem colocados num liquidificador para produzir uma “vitamina para boçais”, os “cidadãos de bem” capazes de desprezar o próprio país. Que ignoram o discurso bélico-religioso dos EUA e de Israel e justificam tudo com o alistamento em uma suposta guerra entre o bem o mal, que autorizaria até o uso da violência, o extermínio e o neocolonialismo. Vitória do “soft power”, capaz de influenciar por meio da atração e persuasão, e do “hasbará”, que resume os esforços de relações públicas e diplomacia pública do Estado de Israel, com o objetivo de promover uma imagem positiva do país no exterior e justificar suas políticas e ações.

  • Imagem sem crédito.

Escrito por:

Jornalista há 40 anos, repórter e editor de grandes veículos - O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Correio Braziliense, Istoé - assessor de imprensa e ex-diretor de agências de comunicação corporativa. Trabalhou no Senado e na Prefeitura do Rio. Já colaborou em diversos sites. Ex-professor de Jornalismo da PUC-RJ.Premiado, entre outros, com Prêmio Esso, Embratel e Herzog.

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