Dataprev adquire geocodificação nacional de endereços que tem risco de uso indevido de dados pessoais

19 de dezembro de 2025, 10:43

A Dataprev firmou um contrato de R$ 5,97 milhões com o Instituto de Tecnologias Geo Sociais AddressForAll para a contratação da chamada “Solução de Geocódigo AFA Codes”, conforme extrato publicado na quarta-feira (17) no Diário Oficial da União. O contrato oferece à Dataprev um poderoso instrumento de padronização e qualificação de endereços em escala nacional. A solução permite transformar endereços textuais em códigos geoespaciais padronizados e realizar o caminho inverso, criando uma camada comum de localização que pode ser integrada aos sistemas corporativos da estatal.

Apesar da estatal – em contato com o blog – afirmar que dispõe de salvaguardas para a proteção dos dados de cidadãos brasileiros, se são suficientes ou não para impedir eventuais vazamentos é questão que ainda está em aberto, pois isso aparentemente dependerá da boa-fé de governos em não ferir a LGPD.

A contratação foi realizada por inexigibilidade de licitação, com base na Lei 13.303, e prevê vigência total de 38 meses, sendo 36 meses de uso da solução, além de suporte, manutenção preventiva e corretiva, atualizações de versões, capacitação e orientação técnica. O objeto do contrato inclui a “Base de Dados das Grades do Brasil”, o software gerador de geocódigos e APIs de codificação e decodificação, todos com licença permanente do código-fonte.

Na prática, a Dataprev passa a contar com um instrumento robusto de padronização e qualificação de endereços em escala nacional. A adoção de um geocódigo único viabiliza a correção de inconsistências cadastrais, a unificação de bases hoje fragmentadas e a melhoria da qualidade dos dados utilizados em políticas públicas. A infraestrutura também abre espaço para novas aplicações governamentais, como o planejamento territorial de programas sociais, a identificação de áreas com maior demanda por serviços públicos, o monitoramento da execução de políticas e a avaliação de resultados com base em critérios geográficos mais precisos.

Ao associar localização a dados administrativos, a Dataprev dispõe agora de meios técnicos para apoiar políticas focalizadas, otimizar a distribuição territorial de benefícios, identificar vazios de atendimento e fortalecer ações intersetoriais entre áreas como previdência, assistência social, saúde e trabalho. Em tese, trata-se de um avanço relevante na capacidade do Estado de planejar e executar políticas públicas orientadas por evidências territoriais.

Nota Oficial

Junto à cópia do contrato, a Dataprev encaminhou nota oficial na qual explicou que atua no desenvolvimento e manutenção de soluções para acesso a benefícios e programas de proteção social e que, desde as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul, passou a priorizar a qualificação das informações de endereços para agilizar o acesso da população a direitos e benefícios.

Segundo a estatal, o trabalho envolve a integração de dados mais precisos de localização, para além do CEP ou de coordenadas geográficas, com o objetivo de ampliar o escopo das informações sobre moradias, incluindo áreas rurais, comunidades remotas e pontos de difícil endereçamento. Nesse contexto, a Dataprev afirma ter buscado no mercado uma solução especializada de georreferenciamento e geocodificação do território brasileiro, fornecida pelo Instituto AddressForAll.

A estatal informa ainda que o contrato foi celebrado em 12 de dezembro para apoiar a ampliação da capacidade de análise de dados dessa infraestrutura pública digital de endereços em desenvolvimento e que o instrumento está disponível para consulta em seu portal de contas públicas.

A justificativa apresentada reforça o caráter público e social da iniciativa e explicita o objetivo de aprimorar o acesso a benefícios e políticas públicas em situações de emergência e em territórios historicamente pouco atendidos por sistemas tradicionais de endereçamento.

Interesse público x privado

Não se trata de demonizar a organização parceira deste contrato com a Dataprev. Mas existe um risco que não pode ser simplesmente ignorado na questão da proteção de dados pessoais armazenadas em banco de dados oficiais, sob a guarda e responsabilidade dos agentes públicos.

Instituto de Tecnologias Geo-Sociais AddressForAll é uma organização sem fins lucrativos (ONG) sediada em São Paulo, criada em 2020, que mantém uma base de dados de endereços aberta, colaborativa e gratuita, e atua em tecnologia geoespacial com impacto social. No último dia 14 de maio tornou-se participante da Overture Maps Foundation, uma entidade internacional fundada em 2022. pelas empresas Amazon Web Services (AWS), Meta, Microsoft e TomTom.

Nessa Fundação se agregaram diversas outras empresas em todo o mundo, que têm interesse em obter dados, ainda mais quando forem abertos e venham de bancos de dados públicos. E a relação das empresas que contribuem para a manutenção dessa Fundação é grande (clique na imagem):

Portanto, não se pode descartar que o contrato, embora relevante para o Estado, também o é para interesses comerciais de setores privados nacionais e internacionais. Dado é a principal moeda corrente no planeta, independentemente de quem os forneça de livre e expontânea vontade ou não.

Onde a nota não esclarece

A leitura integral do contrato confirma parte das explicações da Dataprev, mas também revela pontos que a nota oficial não aborda ou apenas tangencia. O contrato deixa claro que o Instituto AddressForAll não atua apenas como fornecedor neutro de software. Ao prever tratamento de dados pessoais, subordinação às instruções da Dataprev, interação com o encarregado de dados e obrigações de descarte seguro e segurança da informação, o instrumento enquadra o Instituto como operador de dados pessoais, nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados.

Esse ponto é relevante porque confirma que a solução será operada em contexto real de dados pessoais, ainda que sob controle da Dataprev. A nota oficial não nega essa possibilidade, mas também não explicita o papel do Instituto como operador, o que limita a compreensão pública sobre o grau de acesso a dados reais necessário para a execução do contrato.

Além disso, embora a nota destaque finalidades legítimas e socialmente relevantes, como a ampliação do acesso a benefícios, ela não enfrenta diretamente os riscos inerentes à associação entre geocódigos de alta precisão e bases sociais sensíveis. A Dataprev administra algumas das bases de dados mais sensíveis do Estado brasileiro, reunindo informações previdenciárias, trabalhistas e sociais vinculadas a CPF, NIS (Número de Identificação Social), renda, domicílio e situação de vulnerabilidade. Quando a informação de localização passa a ser associada a essas bases, o geocódigo deixa de ser um dado técnico isolado e se transforma em dado pessoal e, em muitos casos, em dado sensível por inferência.

O cruzamento entre território e dados sociais pode permitir a criação de perfis individuais ou familiares, a identificação indireta de beneficiários em áreas de baixa densidade populacional e a produção de mapas de vulnerabilidade altamente granularizados. Em determinados contextos, a precisão territorial pode descaracterizar qualquer alegação de anonimização, elevando o risco de reidentificação indireta de pessoas naturais.

Salvaguardas e Governança

contrato avança em relação ao texto genérico do extrato publicado no Diário Oficial ao incorporar cláusulas específicas de proteção de dados pessoais. Ele prevê que a Dataprev é a controladora dos dados, que o Instituto deve tratar informações pessoais apenas conforme instruções formais, que os dados devem permanecer em ambiente controlado e em território nacional e que há obrigação de comunicação de incidentes e descarte seguro ao final da execução.

O instrumento também reconhece explicitamente o risco. A matriz de riscos anexa classifica como de “impacto alto” a possibilidade de violação das regras de privacidade e proteção de dados, inclusive da LGPD. O contrato prevê ainda a possibilidade de a Dataprev exigir da contratada a elaboração de Relatório de Impacto à Proteção de Dados (RIPD).

Esses dispositivos representam um avanço de governança em relação ao que se podia inferir apenas pelo extrato publicado. No entanto, eles não eliminam os riscos estruturais associados à arquitetura da solução. O contrato não delimita materialmente a “granularidade mínima” dos geocódigos (não há uma especificação obrigatória sobre o grau de precisão dos dados de localização), não veda expressamente a reidentificação indireta, não impõe restrições claras à perfilização territorial e não enumera de forma taxativa as finalidades para as quais a solução poderá ser utilizada.

A licença permanente do código-fonte e o uso sob demanda mantêm aberta a expansão do uso da solução para múltiplos sistemas e políticas públicas ao longo do tempo, ampliando o risco de uso secundário e de compartilhamento indireto de informações por meio da adoção de um geocódigo comum como chave de correlação entre bases distintas. Ou seja, a possibilidade de um vazamento dos dados pode ocorrer além das fronteiras da Dataprev.

Debate Aberto

O contrato, portanto, não invalida a justificativa apresentada pela Dataprev nem o potencial benefício público da iniciativa. Ao contrário, confirma que se trata de uma infraestrutura estratégica para a modernização do Estado e para a ampliação do acesso a direitos, especialmente em contextos de emergência e em territórios pouco cobertos por sistemas tradicionais. Como o fato ocorrido nas enchentes do Rio Grande do Sul.

Ao mesmo tempo, a leitura do instrumento mostra que os riscos à proteção de dados não são meramente teóricos. Eles são reconhecidos pelo próprio contrato e decorrem da combinação entre geocodificação de alta precisão, bases sociais sensíveis e uso em larga escala. A governança formal evolui em relação ao extrato do DOU, mas não resolve todas as questões de finalidade, proporcionalidade e mitigação de riscos por inferência.

O debate, portanto, deixa de ser sobre a legalidade da contratação e passa a ser sobre a suficiência das salvaguardas adotadas frente ao poder analítico que a solução confere ao Estado. Em um contexto de crescente atenção da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, do Tribunal de Contas da União e da Controladoria-Geral da União, contratos dessa natureza tendem a ser avaliados não apenas pelos benefícios declarados, mas principalmente pela forma como seus riscos são governados, monitorados e tornados transparentes para a sociedade.

Tudo ao final deixa transparecer que, o bom uso da solução disponível no contrato, que dará ao governo poderosa ferramenta para execução de políticas públicas, ficará sujeita à boa ou má-fé da diretoria da Dataprev e que em paralelo funcione um controle externo constante, para conferir e impedir eventuais desvios de função.

Não se trata aqui de acusar ou levantar suspeitas sobre a atual diretoria da estatal deste governo. Espera-se apenas que haja a compreensão dentro do próprio governo para os riscos que a tecnologia poderá trazer para a privacidade do cidadão. Riscos que poderão ser evitados, caso haja efetivamente um controle externo pelo tempo que durar o contrato, seja qual for o governo no futuro.

Foto: Daniel Ferreira/Metrópoles

Escrito por:

Jornalista (Reg prof 1618 - DF) 40 anos de profissão, com passagem pelas redações da Radiobras, Jornal de Brasilia, O Globo, Jornal do Brasil, agências de notícias Folhapress e JB, Rádio CBN, IDG Computerworld, Convergência Digital. Editor do blog Capital Digital.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *