
Desertos de notícias: 20 milhões no “buraco negro” da informação: sem mídia local, reféns das redes

A famosa frase do filósofo inglês Francis Bacon “o conhecimento é poder”, que derivou, nas palavras de estudios da comunicação, para “informação é poder”, nos leva a refletir sobre um fato visível – e igualmente preocupante – em um Brasil onde parte considerável do seu povo vive nos chamados “desertos de notícias”. Locais onde, sem veículos de jornalismo local, muito menos independentes, a população acaba cada vez mais escrava do que sai do lixo tóxico de novos canais, como sites sensacionalistas, redes sociais e influenciadores, tornando o acesso à informação isenta não só menos democrático, mas sujeito ao viés de quem produz – numa área onde a direita triunfa. Os dados mais recentes mostram que atualmente 20,6 milhões de brasileiros e brasileiras (10,2 % da população), vivendo em 2.504 municípios – de um total de 5.570 localidades mapeadas -, estão dentro desse “buraco negro” de notícias. Em cada 20 municípios brasileiros, nove são desertos de notícias.
Os dados são da mais recente pesquisa do Atlas da Notícia, apurado entre outubro de 2024 e junho de 2025, um mapeamento periódico de veículos produtores de notícias – especialmente do jornalismo local sobrevivente –, iniciativa do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), mantenedor do Observatório da Imprensa, em parceria com a agência de dados Volt Data Lab. O estudo confirma que, se quem mora nas grandes conurbações urbanas, não é impermeável às fake news, isso é ainda mais grave para quem só tem acesso à notícia “importada”, filtrada e reinterpretada, na maioria das vezes via redes sociais e aplicativos de mensagens – fontes únicas de informações.
O crescimento do segmento jornalístico online reduziu um pouco esses “desertos de notícias”, mas não há evidências de que trouxe jornalismo mais confiável, com informações verificadas, especialmente por concentrarem iniciativas individuais ou blogs – todos com interesses políticos bem nítidos. O relatório destaca a preocupação com a fragilidade dessas iniciativas digitais: muitas são sustentadas por redações enxutas, com desafios de gestão, financiamento e dependência política local, além do risco de apagamento de memória histórica. Pesquisadores da USP analisaram 25 municípios considerados “desertos de notícia”, focando nas postagens das prefeituras em redes sociais no final de 2023. Conclusão: prefeituras utilizam seus sites oficiais – o que não é considerado jornalismo – e as redes para divulgar suas ações governamentais — mas quase nada para informar sobre serviços públicos relevantes ou prestar contas à sociedade. E há um forte culto à personalidade dos governantes.
O Nordeste lidera, em número absoluto de municípios no “deserto”, ou 890, o que significa metade do total, mas é surpreendente constatar que mesmo o “pujante” Sudeste possui 830 municípios sem jornal local — quase a metade da região. A verificação de dados é precária, e a ausência de jornalismo local abre espaço para desinformação — o que favorece discursos polarizados e narrativas nacionalizadas de fácil viralização. Isso tem consequências eleitorais: a mais recente pesquisa do DataSenado indicou que 45% da população decidiu seu voto com base em conteúdo visto nas redes sociais, especialmente no WhatsApp, que tem amplo alcance, superando até mesmo a televisão para muitos usuários.
Agora, a má notícia para quem não é “cidadão de bem”: estudos apontam que a maioria dos grandes influenciadores digitais brasileiros mostrou alinhamento com o bolsonarismo nos meses anteriores às eleições de 2022 — cerca de 88% dos top 212 influenciadores examinados tinham proximidade com políticos de direita. A eleição de 2018 foi intensamente marcada por disseminação de desinformação em ampla escala, com conteúdos pró-Bolsonaro tendo enorme alcance via WhatsApp — chegaram a atingir 28 milhões de pessoas por dia em determinados momentos. Em 2026, com a falta de regulamentação das redes, o apoio dos donos das big techs a Donald Trump, e a sofisticação da Inteligência Artificial, será uma briga de foice num quarto escuro.
Boa parte da esquerda ainda pensa com a cabeça do mundo da comunicação de massas, mas vivemos o cenário da comunicação distribuída. E, como mostramos, municípios sem mídia local tornam-se ambientes mais vulneráveis a influências digitais – especialmente por falta de vigilância jornalística e validação de informações. Como resumiu Sabrina Almeida, cientista política da FGV, “a extrema direita tem uma afinidade maior com a própria dinâmica das redes sociais, que tende a privilegiar conteúdos radicalizados ou que gerem reações como pânico ou medo.”. “A esquerda brasileira sempre teve dificuldades para lidar e compreender a comunicação. Isso continuou no cenário digital”, faz coro o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). Com um celular na mão e uma notícia falsa na cabeça, a direita dominou o universo digital nas últimas eleições e tem tudo para repetir a dose nas próximas.
- Imagem gerada a partir de IA