
Essa Tal “Ruanê”

Ah, a “Ruanê”, essa criatura mitológica tão combatida e cuspida, que, na cabeça de muita gente, é um cofre aberto do governo para artistas “mamarem” à vontade.
Uma interpretação falha, equivocada e preguiçosa.
A Lei Rouanet — Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991 — foi criada, pasmem, durante o governo de Fernando Collor, e proposta pelo então Ministro da Cultura Sérgio Paulo Rouanet — que dá nome ao mecanismo – para incentivar a cultura brasileira. Sim, no meio do apocalipse político-econômico dos anos 90, alguém teve uma boa ideia. Seu funcionamento é de uma simplicidade irritante: empresas e pessoas físicas que já pagam Imposto de Renda podem destinar uma parte do que já iriam entregar ao Leão para financiar projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura. Simples. Muita gente acha que o artista liga pro Ministério da Cultura e fala: “Oi, libera aí 3 milhões pra minha turnê”. Não mesmo. Primeiro, que o governo não dá o dinheiro. Ele só autoriza que empresas e pessoas físicas invistam parte do imposto que já iriam pagar em projetos culturais. Ou seja, o dinheiro sai do imposto que já iria ser pago.
Há quem bufe que o valor total arrecadado pela União diminui um pouco, se esquecendo que o retorno para a economia é muito maior. Cada real incentivado pela Rouanet gira muito dinheiro na economia. Gera emprego pra técnico de som, figurinista, bilheteiro, segurança, camareiro e até pro cara que vende pipoca na porta do teatro. É um trator econômico nos campos da cadeia produtiva.
Desde a sua criação, a Rouanet já injetou quase R$ 50 bilhões na economia criativa, com um efeito multiplicador invejável: cada real incentivado retorna R$ 1,59 para o país. No primeiro semestre de 2025, bateu recorde: R$ 765,9 milhões captados, um aumento de 37,8% em relação ao mesmo período de 2024. Esse dinheiro financia espetáculos, restaura museus, mantém orquestras, leva exposições para cidades pequenas, paga técnicos, iluminadores, cenógrafos, costureiras, bilheteiros, seguranças, motoristas, carregadores.
É emprego, renda, turismo, comida vendida no entorno do evento, hotelaria, serviços de transportes, lazer.
E antes que alguém puxe a cartilha do “mas só artista famoso pega dinheiro”, vale lembrar que essa é a fake news mais querida dos detratores da lei. A maior parte dos projetos aprovados é de pequeno e médio porte, longe dos holofotes. O problema é que os que ganham manchete são sempre os grandes, aí fica parecendo que é só pra eles que funciona, o que não é verdade.
A Lei Rouanet é um mecanismo de renúncia fiscal com regras claras e prestação de contas detalhada. O projeto precisa ser aprovado tecnicamente, captar os recursos, executar e comprovar tudo. Quem fala que é fácil aprovar projeto na Rouanet nunca preencheu um formulário de 100 páginas, nem juntou nota fiscal de cada parafuso de cenário. A burocracia é um inferno.
Lá fora, mecanismos semelhantes são vistos como sinal de inteligência cultural. Na França, há incentivos fiscais para o cinema que tornaram Paris um polo internacional de filmagens. Nos Estados Unidos, o mecenato privado sustenta boa parte das orquestras, teatros e museus. No Reino Unido, há a Arts Council England, que distribui dinheiro do governo britânico e da loteria nacional para apoiar museus, teatros, companhias de dança, festivais, bibliotecas, artistas independentes, música, cinema e artes visuais. Nenhum país sério acha que cultura se sustenta só com “boa vontade”. Aqui, preferimos transformar a Rouanet em bode expiatório político, porque dá voto, engaja nas redes e mantém parte da população com raiva de artistas.
Os resultados positivos da “Ruanê” estão aí para quem quiser ver: Grandes espetáculos e exposições brasileiras que lotaram teatros, estádios e museus só existiram graças à Rouanet. Montagens como “O Rei Leão” e “O Fantasma da Ópera” no Brasil, exposições como “Castelo Rá-Tim-Bum” no MIS de São Paulo, shows e turnês que rodaram o país, festivais de música, eventos de dança e circo. Parte disso financiado por empresas que preferiram investir na cultura nacional.
A ironia é que quem mais vomita contra a “Ruanê” geralmente consome produtos culturais feitos sob leis de incentivo sem sequer saber. Ou pior: acha lindo quando é nos Estados Unidos ou na Europa, mas no Brasil chama de “mamata”. Os “especialistas” das redes sociais adoram usar essa palavrinha.
No fim das contas, a Lei Rouanet não é um problema; é uma solução que pode ser aprimorada. O problema, mesmo, é a ignorância travestida de opinião.
Do cinema nacional aos grupos de teatro de bairro, leis como a Roaunet são fundamentais.
Sem incentivo fiscal, só sobraria show de sertanejo universitário no estacionamento do shopping ou influencer vendendo brigadeiro gourmet no TikTok. Ou pior: ensinando como fazer moranguinho do amor. Os dentistas adorariam.
- Imagem do diplomata, ensaísta, filósofo e professor universitário, o ex-ministro da Cultura, Sergio Paulo Rouanet, cuja lei de incentivo à cultura leva seu nome. Foto de arquivo: Carlos Moura/CB Press.