
Formação de condutores: por que acabar com autoescolas pode ser um erro

O governo tem acertado em muitas pautas de interesse social. Graças a isso, conseguiu restabelecer vínculos de empatia com a opinião pública e vê seus índices de aprovação serem restaurados, aumentando o cacife eleitoral para o ano que vem.
Mas há uma pauta que não me parece fazer sentido algum: a de acabar com as autoescolas brasileiras sob o argumento de que a formação de motoristas é cara demais.
Estima-se que 20 milhões de brasileiros dirijam sem carteira por causa do custo da formação prática. Segundo o Ministério dos Transportes, autor da proposta, o valor médio atual da formação teórica e prática de um motorista é de R$ 3,2 mil. Isso tornaria o direito de dirigir excludente e elitista.
As estatísticas de acidentes parecem corroborar os argumentos dos que pretendem extinguir os cursos de formação de condutores. O Brasil é o terceiro país do mundo em número de acidentes de trânsito e o sétimo em letalidade, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.
O trânsito mata, em média, 35 mil brasileiros a cada ano. Nos acidentes, a imperícia e o desrespeito à legislação são geralmente apontados como causas contribuintes em quase todos os casos com mortos e feridos graves. O alcoolismo e o uso de drogas estão presentes em três de cada quatro acidentes.
Em algumas cidades brasileiras, a falta de habilitação causa verdadeiras catástrofes, com uma epidemia de mortes evitáveis acontecendo sem que as autoridades sequer se sensibilizem para o problema.
Teresina, capital do Piauí, talvez seja o exemplo mais nefasto do mal que a falta de boa formação causa à segurança no trânsito. Corredores de ônibus construídos ao longo desta década falharam em atender à população. Com ônibus caros, demorados e ineficientes, a população teve que se virar para conseguir se deslocar entre casa e trabalho.
A saída encontrada foram as motocicletas de pequena cilindrada, invariavelmente pilotadas por motociclistas que não conhecem a legislação, não usam o equipamento obrigatório e desprezam todos os limites.
O resultado é catastrófico: 69,4% dos acidentes registrados em Teresina envolvem motocicletas. Além do alto número de mortes — foram 13,5 mil em 2023 —, o atendimento emergencial está à beira do colapso pela avalanche de acidentados graves que chegam aos hospitais, sobrecarregando inclusive o orçamento da saúde.
Por tudo isso, mirar apenas nas autoescolas — embora elas também sejam responsáveis pela formação deficiente dos motoristas — equivale a pedir que o problema da má formação se agrave.
Enxergar o problema apenas pelo custo da formação, e não pelas deficiências próprias do ensino de condutores, é condenar o Brasil ao aumento da carnificina que se vê nas ruas e rodovias.
É claro que as autoescolas não têm dado conta de sua função, que é a de educar motoristas e prepará-los para enfrentar a guerra do trânsito. Elas fazem parte de um sistema corrupto e, muitas vezes, pertencem a policiais e máfias que surgiram como bolores parasitando os Detrans. Mas fica a pergunta: extingui-las é mais proveitoso para a sociedade do que obrigá-las a cumprir sua função social?
Formar pilotos de avião é um processo análogo ao da formação de condutores. O custo da formação teórica e prática é inacessível para a quase totalidade da população: a hora de voo de instrução custa hoje cerca de R$ 1,5 mil. Mas, não por acaso, ninguém está condenando a rede de escolas de pilotagem e aeroclubes em função do alto custo da formação.
Imagine o que seria da segurança aeronáutica caso aos pilotos fosse concedido o beneplácito de uma formação livre de qualquer curso, teórico ou prático, permitindo que qualquer um que demonstre habilidade para controlar a máquina receba uma licença. Tenho certeza de que você não gostaria de entrar em um avião conduzido por um piloto autodidata.
Mas, quando o assunto é o trânsito e o argumento é apenas o da economia do consumidor, a analogia não vale — restando aos críticos desse equivocado processo de desregulamentação apenas a detração habitual destinada a quem aponta falhas em apostas de caráter populista, como a consulta pública em curso.
Melhor — e socialmente mais proveitoso — seria corrigir as falhas na formação oferecida pelas autoescolas. Só isso poderia garantir que as pessoas habilitadas iniciassem sua vida ao volante sabendo por que os limites de velocidade devem ser respeitados, por que não se deve ultrapassar em faixa contínua e até mesmo qual lado da via deve ser ocupado quando não se está ultrapassando.
- Imagem gerada em IA