Governadores brancos contra mulheres negras

31 de outubro de 2025, 06:12

Tudo começou com uma ação policial atabalhoada promovida pelo frágil governador do Rio de Janeiro. O resultado foi uma chacina com corpos estirados no chão da Penha. Alguns corpos decapitados. A ação tinha por objetivo enfrentar o Comando Vermelho que, paradoxalmente, saiu ileso de toda pirotecnia castrista.

Em meio ao caos, governadores extremistas bateram cabeça. Uns atacaram os céus. Outros, deram um passo na direção do governador carioca, mas logo recuaram. Ninguém seguiu o exemplo de Cláudio Castro e o governo paulista chegou a afirmar que não faria nada parecido em seu Estado.

Pouco depois, os governadores extremistas montaram um jogral que lembrava a Hora da Saudade, um programa de rádio saudosista. O jogral de governadores extremistas estampava homens brancos de cabelos brancos e ego piscando como um giroflex.

No asfalto, longe dos holofotes, mulheres negras desceram do morro para resgatar os corpos de seus familiares chacinados e que se encontravam no Instituto Médico Legal (IML). Em vão. Não puderam nem chegar perto dos corpos. Muitos desses corpos já tinham sido autopsiados, sem qualquer presença de órgãos ou autoridades não vinculadas ao governo estadual. As mulheres negras se revoltaram. Deram as mãos e denunciaram o descaso do governador, branco, sentado sob a mira dos jornalistas que ouviam a ele e seus colegas, tão brancos e extremistas quanto ele.

As mulheres negras gritavam pelos seus entes mortos enquanto os governadores brancos usavam a tragédia para atacar o governo federal e para anunciar um factoide que denominaram de “consórcio da paz”. Logo a paz, destruída nos morros por abusos governamentais. Logo a paz que as mulheres negras exigiam lá no asfalto, em frente o IML.

Nada poderia ser mais didático sobre o Brasil. Governadores brancos demonstrando total insensibilidade para com as famílias mutiladas. Na calçada, mulheres negras, pobres, que acabaram de descer o morro, exigindo pelos corpos de seus parentes e falando em paz.

O Brasil é marcado por esses mundos absolutamente apartados que fazem da política algo distante dos morros. A política, inúmeras pesquisas qualitativas que ouviram essas mulheres negras e pobres registraram, é vista por elas como coisa das elites brancas. Brigas pelo poder que pouco têm relação com seu cotidiano no morro.

Nos próximos dias, uma guerra de narrativas ganhará tons agudos como prenúncio das eleições de 2026. Os governadores brancos extremistas querem pautar as eleições com o tema da segurança pública e da violência estatal contra tudo e todos. As mulheres negras querem paz para tocar suas vidas e de suas famílias. São desejos e pautas inconciliáveis que projetam o jogo político como algo muito distante dos morros.

Nunca o asfalto foi tão nitidamente o lugar de brancos. O asfalto e os holofotes.

Os corpos estendidos no chão, numa praça da Penha, no Rio de Janeiro, repetiram cenas conhecidas das mães, talvez irmãs ou conhecidos das famílias que perderam entes na chacina da Candelária. Em 23 de junho de 1993, oito jovens foram assassinados, fuzilados por gente que parou seus carros e abriram fogo contra eles. Do nada, sem aviso. A causa não poderia ser mais absurda: aquele lugar era um ponto de venda de drogas administrado pelos milicianos que atacaram os jovens. Milicianos.

Esta história é uma explicação em si. Uma explicação sobre o que faz do morro uma luta pela vida pacífica e o que faz do asfalto um espaço de descaso, de uso e abuso dos pobres e negros dos morros.

Desta vez, as mulheres negras conseguiram mobilizar muitas entidades e movimentos. Vários coordenados, inclusive, por brancos. Vários universitários e acadêmicos se juntaram para protestar contra o asfalto e os governadores brancos.

Talvez, a política brasileira só mudará se as mulheres negras ocuparem os lugares dos governadores brancos. Se os morros falarem mais alto que o asfalto. Talvez. O Brasil é complexo e tortuoso. Poucas vezes o óbvio convence neste país. Muitas vezes, o canto da sereia dos brancos encanta muito mais. Talvez.

Talvez essa chacina cale mais fundo que as outras tantas promovidas em nome da paz. Talvez.

  • Imagem gerada em IA

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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