
Governança da Internet com o chapéu de quem?

A polêmica sobre a governança da Internet está muito mal-parada no Brasil. Há anos o blog Capital Digital assiste os movimentos das plataformas de Internet, organizações sociais ditas como “sem fins lucrativos” e entidades de fomento norte-americanas, se metendo e tentando interferir no processo. Ontem ocorreu mais um capítulo dessa luta pelo poder, que vem sendo travada nos bastidores políticos entre a Anatel e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Episódio que desta vez contou com a participação de uma entidade que se diz preocupada com a governança da Internet brasileira, mas falta saber em nome de quem.
Hoje (27), o Senado Federal deverá colocar em votação o PL 2.628/2022 que estabelece regras para proteger as crianças e adolescentes em ambientes digitais – conhecido também como “ECA Digital” – numa analogia com o Estatuto da Criança e do Adolescente em vigor no país. Não há sinais de que o projeto, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), deixe de ser aprovado.
O projeto é bom, no geral tem o apoio de todos os setores que lidam com os debates sobre regulamentação da internet. Mas ontem foi bombardeado pela Internet Society Brasil (ISOC Brasil) em relação à proposta parlamentar de inserir a Anatel como executora de ordens judiciais para bloqueio ou retirada de conteúdo, permitindo que a agência escolha a melhor maneira de cumprir a decisão dos tribunais.
A briga da ISOC Brasil com a presença da Anatel no ECA Digital se deve ao fato de que o legislador entendeu que a melhor forma cumprir a proposta de proteger crianças e adolescentes da pedofilia e da adultização com fins comerciais delas, seria dando à agência poderes para escolher se faz o bloqueio ou retirada de conteúdo ilegal da Internet por meio das operadoras dos serviços de telecomunicações ou, se desejar, através dos provedores de conexão à Internet (através dos PPTs – Pontos de Troca de Tréfego e nos serviços de resolução de nomes de domínio).
O legislador deu pela primeira vez a autonomia para a Anatel atuar com ordem judicial, além do setor de telecomunicações de quem é representante como regulador, passando as suas atribuições também para a área de Serviço de Valor Adicionado (internet), que não é regulado por ela. Isso atingiu em cheio o atual modelo de governança exercido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br). Daí surgiram as críticas da ISOC, que junto como CGI defendem a retirada desse trecho no texto do projeto a ser votado pelo Senado.
Quem é a ISOC.Br?
É preciso ficar claro: em nome de quem o “Capítulo Brasil” da Internet Society vem defendendo que uma agência reguladora no Brasil não assuma o papel de executora de ações judiciais que digam respeito à bloqueio de conteúdos ilegais na rede de Internet, seja na sua área ou de competência do CGI – que não tem nenhum registro de que já tenha atuado alguma vez nessa direção.
Em sua página na Internet a Internet Society (ISOC) se define como “uma associação sem fins lucrativos” criada em 1992 “com atuação internacional”, para promover “liderança no desenvolvimento dos padrões Internet, bem como fomentar iniciativas educacionais e políticas públicas ligadas à rede mundial entre computadores”.
Essa ação da entidade é feita junto a governos, empresas e entidades em geral, sempre com o objetivo de alcançar bons resultados dentro de princípios que a regem e que seriam: apoiar “uma rede aberta e universalmente acessível, dando apoio à inovação, à criatividade e às oportunidades comerciais”. Na página dela são destacadas as suas principais linhas de atuação, que em geral coincidem com os princípios de atuação do CGI.br.
A ISOC possui um programa de “organization members”, que reúne entidades comprometidas com o apoio ao desenvolvimento e à governança da Internet. Entre os membros estão incluidas as empresas Amazon, Google, Mozilla, Futurewei, RIPE NCC, Internet Initiative Japan e a Arab States Research and Education Network. Essas organizações colaboram com a ISOC por meio de suporte técnico, advocacia e inovação em suas respectivas áreas.
O problema é quem dá o suporte financeiro para a manutenção das atividades dessa “entidade sem fins lucrativos” no Brasil. Em 2019 a ISOC criou o seu braço filantrópico através da Internet Society Foundation que ficou responsável por conceder bolsas e financiar projetos de inclusão digital, fortalecimento da internet aberta e pesquisas acadêmicas.
Hoje a Internet Society Foundation tem capacidade financeira para fazer filantropia no Brasil, graças às atividades paralelas que exerce com o “Public Interest Registry (PIR)”, que vem a ser a responsável pela administração dos domínios .org, .ngo e .ong.
Os valores arrecadados com a operação e registro desses domínios são a principal fonte de receita da ISOC e da sua Fundação. Em resumo, a filantropia da Internet Society Foundation é financiada principalmente pelos rendimentos da gestão dos domínios .org (que movimentam milhões de registros no mundo todo).
Em 2020 foi criada a Connected Giving Foundation, uma entidade “sem fins lucrativos” que administra os investimentos da ISOC e da própria Internet Society Foundation. O papel dela é gerar rendimentos de longo prazo para garantir sustentabilidade financeira e apoiar a expansão das atividades filantrópicas. Além desses rendimentos, a ISOC também é financiada graças às parcerias institucionais e doações que recebe de grandes empresas de tecnologia e conectividade, tais como a Meta, Google, Amazon entre outras empresas.
Então é preciso levar em conta que o braço brasileiro de uma organização estrangeira, com capital estrangeiro de empresas diretamente preocupadas com o andamento da governança da Internet no Brasil, vem emitindo pareceres contra ou a favor das propostas de regulamentação da rede. E agora interferindo diretamente na vontade dos legisladores de determinar que uma agência reguladora governamental atue onde até então não pisava: as redes sociais.
Como não pode bater de frente com a agência reguladora, já que ambas tem o pé no governo, o CGI.br vem escalando alguma organização da sociedade civil para isso. Ontem foi a vez da ISOC Brasil dizer aquilo que o CGI não tem coragem de falar em público: que a Anatel quer roubar as suas competências no controle da Internet. O problema é: o CGI também tem interesse em não regular nada na Internet (exceção para esse projeto pontual, que protege crianças e adolescentes) por interesse de quem? No final desta manhã o blog tomou conhecimento de que o CGI ( Nic.br) emitiu nota se posicionando contra a presença da Anatel no Eca Digital.

“A proposta apresentada tem o objetivo de dar efetividade à proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. A situação hoje, que faz com que o Congresso queira aprovar essa lei, é justamente porque hoje o ambiente digital é livre e aberto. Livre para a pedofilia e aberto para a criminalidade. Essa proposta dá mecanismos efetivos o combate ao abuso de crianças e adolescentes no ambiente digital”, destacou o presidente da Anatel, Carlos Baigorri.
Para ele, “alguns ‘players” têm uma visão romântica da Internet. “Querem mantê-la como está: aberta para a vagabundagem e livre para a criminalidade, mas não me parece que seja isso que a sociedade demanda” disparou Baigorri.
O presidente da Anatel entende que as medidas propostas no PL 2.628 visam dar efetividade e são as mesmas que a Anatel discutiu por ocasião dos debates sobre o combate às BETs ilegais. “Certamente terá gente que defende que isso não deva ocorrer e ao mesmo tempo não propõe nada. Se você ver, não há proposta alguma, só crítica à esse modelo de combate à criminalidade”, atacou o presidente da Anatel.
O projeto será votado na sessão de hoje do Senado, segundo o presidente, senador Davi Alcolumbre (União-AP) e não há registros ou manifestações dos parlamentares de que ele não deva ser aprovado na íntegra. A conferir.
- Imagem do presidente da Anatel, Carlos Baigorri: “alguns ‘players” têm uma visão romântica da Internet. Reprodução.