
Guardiãs da Água: mulheres por soberania hídrica

Nos rincões do Brasil, a água não é apenas um recurso essencial: é fonte de sobrevivência, identidade e resistência. E, já há algum tempo, de afirmação de gênero. Neste cenário, crescem no país iniativas de grupos de mulheres, com ou sem apoio de universidades e ONGs, que têm tomado nas mãos a missão de proteger, conservar e gerir o bem mais precioso que temos. Em algumas comunidades, essas mulheres ganham um nome de batismo que reflete esse empoderamento: guardiãs da água. Já são várias as iniciativas de mulheres de comunidades tradicionais, em todo o país, que ajudam a garantir sustentabilidade, alimentos e condições de vida dignas para elas e suas famílias – e, quando possível, para a comunidade local. Se podemos partir de um exemplo, não vejo um melhor que o da paupérrima Solidão – o nome já diz muito – , no sertão pernambucano, um ex-distrito de Afogados da Ingazeira, elevado a município em 1963. Com pouco mais de 5 mil habitantes, quase 3 mil não têm fornecimento de água. Marcado por chuvas irregulares e longos períodos de estiagem, o reuso da água resultante do uso doméstico da lavagem de roupas e louças, organizado pelas mulheres da cidade, garante a irrigação das plantações – o chamado Reuso da Água Cinza. Alem de erguer cisternas – que garantem o armazenamento da água da chuva – utilizado pelas agricultoras.

Quem conhece pouco o interior – tive alguma experiência, primeiro na infância – morando em cidades pobres como Santa Maria da Vitória, na Bahia, na borda esquerda do Rio Corrente, e Araçuaí, uma cidade mineira quase nordestina, no Vale do Jequitinhonha – , e depois correndo o país como repórter, talvez se espante com o que eu, ainda criança, já via nos rios, nas casas, nos morros. Mulheres na linha de frente da gestão da água. Locais onde se vê no dia-a-dia diversas iniciativas da atuação de mulheres em projetos relacionados à sustentabilidade e empoderamento econômico. Caso do projeto “Mulheres Atingidas por Barragens Construindo Autonomia Econômica e Política em Defesa das Comunidades”, desenvolvido pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) – clique aqui – em parceria com o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) – clique aqui. Centenas de mulheres de municípios como Santa Maria da Vitória, Correntina, Coribe e Canápolis participaram esse ano de um encontro em Coribe (BA) para monitorar o andamento da iniciativa. O projeto promove ações de auto-organização, capacitação e incentivo à produção agroecológica, visando fortalecer a autonomia econômica e política das mulheres atingidas por grandes empreendimentos na região.
Mulheres também protagonizaram a resistência e a luta por justiça, reparação e reconstrução social em tragédias ambientais, como nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho, entre 2015 e 2019, região conhecida como Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais, nesse caso com responsabilida da Vale, e no afundamento do solo de bairros de Maceió com a exploração de sal-gema pela Braskem. Mulheres de raça, como a cacique Célia Angohó, que lidera um grupo de 30 famílias pataxós hã-hã-hãe, que ergueu uma nova aldeia depois de serem expelidos de suas terras após o desastre em Brumadinho, e hoje precisam enfrentar ameaças de grileiros. E guerreiras no mundo jornalístico, como nossa colega Cristina Serra, autora da obra-prima “Tragédia em Mariana: A história do maior desastre ambiental do Brasil”, que cumpre seu papel de não nos deixar esquecer.
O Encontro de Mulheres Empreendedoras do Oeste da Bahia, realizado há algum tempo pelo Sebrae, com a participação de mulheres de 15 municípios daquela região baiana, consolidou outro espaço para fortalecer o empreendedorismo de gênero naquela região. O evento reuniu mulheres para compartilhar experiências, promover networking e discutir estratégias de desenvolvimento econômico local. Já o projeto “Enegrecendo e Aldeando a Política nos Vales do Jequitinhonha e Mucuri” é uma iniciativa da UFVJM (Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri), articulada por meio do Observatório dos Direitos das Mulheres dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (ODMulheresVales) – coordenado pela professora Claudilene da Costa Ramalho -, em parceria com o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Ministério dos Povos Indígenas. O foco é capacitar lideranças femininas — negras, quilombolas e indígenas — para fortalecer a participação política e social dessas mulheres em municípios da região, incluindo Araçuaí.

Nesse contexto de persistência em viver, emergem projetos como o Ceres (iniciais de Cerrado Resiliente) – clique aqui – região com bioma complexo, que faz fronteira de transição para Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica e Pantanal. E que surge como um sopro de esperança ao reunir recursos da União Europeia, do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza) e do WWF, que beneficia pequenos e médios produtores – onde essas mulheres estão inseridas. A ideia é estimular soluções mais sustentáveis de produção e uso dos recursos naturais. O projeto “Rio Lilás”, desenvolvido no Vale do Jequitinhonha, dentro do polo de Integração da UFMG, busca capacitar mulheres para atuarem nos comitês de bacia hidrográfica, promovendo identidade, capacitação e integração. Já a Rede de Mulheres das Águas e das Florestas (REMAF) – clique aqui -, teia colaborativa de mulheres ativistas da sociobiodiversidade, fortalece e potencializa o protagonismo feminismo de populações tradicionais, ribeirinhas, indígenas, quilombolas, pesqueiras, extrativistas e que vivem em áreas periféricas dos centros urbanos.

Por toda a Amazônia, mulheres indígenas estão liderando lutas contra indústrias extrativas que tentam explorar seu território, ao mesmo tempo em que atuam como protetoras de suas terras e suas águas. As mulheres da Nação Chapra, um povo indígena que vive em relação recíproca com a terra na Amazônia peruana há mais de 7 mil anos, resistem ao seu “apagamento” pelo colonialismo. E, tradicionalmente, honra o papel central das mulheres na abordagem de questões sociais e culturais dentro de sua comunidade. A descoberta de petróleo na região hoje é a maior ameaça de um genocídio. As mulheres desempenham um papel crítico como guardiãs culturais na Nação Chapra, transmitindo seu profundo conhecimento ancestral aos seus filhos para preservar seus modos de vida tradicionais e a administração de sua terra natal. Olivia Bisa Tirko, a primeira mulher presidente do Governo Territorial Autônomo da Nação Chapra na Amazônia peruana, quebrou barreiras na governança, inspirando mulheres e jovens a sentirem orgulho de sua identidade Chapra e a enfrentarem empresas petrolíferas predatórias.

Buscando a valorização da mulher na ciência, um projeto criado por uma professora do curso de Biologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) insere alunas de escolas públicas de seis estados do Brasil em pesquisas científicas sobre o cuidado das águas e do saneamento básico. A coordenadora do projeto é a cearense Jeamylle Nilin, bióloga e doutora em Ciências Marinhas Tropicais pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Em Sergipe, onde já trabalhou, criou o “Guardiões do Mar”, projeto que trabalha questões relacionadas aos ecossistemas marinhos. Já em Minas Gerais, ela adaptou a ação para estudar as águas doces, debatendo temas como responsabilidade ambiental, ferramentas de monitoramento da água e cidadania. O “Guardiãs da Águas — Meninas pelo Saneamento” é um projeto orçado em mais de R$ 1 milhão financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e apoiado pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e o Ministério das Mulheres.
No Vale do Jequitinhonha, agricultoras criaram um microclima, espécie de microambiente, onde fazem a cobertura morta no solo para reter a água na terra, e reutilizar a água, inclusive a doméstica, na irrigação. Outra prática é a das agricultoras de Goiás, que aprenderam a lidar com os ciclos da terra goiana. Mulheres da Associação de Mulheres Empreendedoras Rurais e Artesanais (Amera), dos municípios de Barro Alto e Santa Rita do Novo Destino, se ocupam das pequenas culturas de mandioca, frutas e verduras, além de baru. Na Chapada Diamantina, na Bahia, em territórios como o Rio Utinga, a atuação feminina é central na luta pelos direitos fundamentais da comunidade. Também são indígenas, quilombolas e pequenas agricultoras familiares na linha de frente da preservação ambiental e da defesa de seus direitos, enfrentando desafios crescentes, como a expansão das monoculturas de banana. Organizações como a Associação de Mulheres da Lagoa Bonita colaboram com o Observatório do Rio Utinga – que passa pelos municípios de Utinga, Wagner, Lajedinho, Lençóis e Andaraí – em iniciativas de preservação ambiental e fortalecimento das comunidades locais. Essas mulheres estão envolvidas em atividades de pesquisa, monitoramento de políticas públicas e promoção da justiça socioambiental, visando à conservação do rio e ao bem-estar das populações que dele dependem.
Vivemos o tempos das Yabás, orixás femininas, do camdomblé, que simbolizam poder, resistência e sabedoria. Além de guerreiras, mães e cuidadoras, as Yabás também guardam a natureza, especialmente as águas, essenciais para a vida e para a manutenção do planeta. Se ainda existe, na cabeça de alguém, dúvida sobre a importância de fortalecer o protagonismo feminino na gestão hídrica e na necessidade de políticas públicas que reconheçam e apoiem essas iniciativas, ela deve acabar agora.
- Imagem gerada em IA