Lula, o negociador

24 de outubro de 2025, 05:28

Nos últimos dias, analistas da Globonews se dividiram ao tentar avaliar os movimentos de Lula, às vésperas do encontro com Trump, na Malásia. Uma parte nitidamente mais liberal e alinhada à cartilha empresarial, condenava Lula pelo que cravaram ser arroubos discursivos desnecessários. Outros, que acompanham o jogo político, sugeriam que se tratava de um estratagema pré-negociação. Chegaram a afirmar que Lula parecia adotar um movimento similar ao do próprio Trump que, na medida em que o dia do encontro se tornava mais próximo, aumentava o tom belicoso para chegar à mesa com mais força.

Evidente que a cartilha empresarial e liberal pouco compreende dos movimentos de uma liderança popular ou experiente negociador sindical. Trata-se de uma deformação já que empresários deveriam estudar aqueles que se postam do lado de lá das mesas de negociação.

Durante algum tempo, fui assessor nacional da Central Única dos Trabalhadores, a CUT. Fui assessor da área responsável pela formação sindical de dirigentes cutistas em todo país, a poderosa Secretaria Nacional de Formação. Esta secretaria era composta por dirigentes sindicais experientes – na minha época, dirigida por Jorge Lorenzetti, que a imprensa reduzia ao posto de “churrasqueiro do Lula”, mas que é um dos dirigentes mais preparados que conheci na esquerda – e um corpo de assessores, na quase totalidade vindos de universidades públicas conceituadas. E o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, o DIEESE.

Um dos cursos de maior sucesso oferecido pela CUT em todo país, para cada categoria e nas escolas sindicais espalhadas por São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais e Pernambuco, era o de Negociação Coletiva. É importante destacar que a CUT, nos anos 1990, se estruturava por categorias (os departamentos nacionais e estaduais de cada categoria) e por Estado. Cada categoria – e Estado – possuía uma equipe técnica de formação sindical, estruturada numa rede de estudos em metodologias pedagógicas sindicais. Havia até mesmo uma revista nacional de formação, a Forma & Conteúdo, encontros semestrais e um grande seminário nacional dedicado à formação sindical. A CUT promovia muito estudo e viagens para todos os cantos do mundo para estreitar relações sindicais com a CGT e CISL italianas, a CFDT francesa, as FNOs dos países do norte europeu, a AFL-CIO dos EUA, e diversas centrais sindicais de todos os continentes, incluindo África, Ásia, América e Europa. Uma equipe técnica trocava informações sobre as tensões e possíveis brechas de negociação em todas as cadeias produtivas que interessava à CUT. Este era o caso da cadeia do cacau, que envolvia a produção no sul da Bahia e na Malásia até a produção do chocolate na Europa, passando pela cadeia de distribuição no atacado e redes varejistas. Foi assim que se soube que o preço do café, no período era influenciada por três grandes transnacionais: a Philip Morris (maior comerciante de café in natura do mundo no período), a Nestlé (maior produtor de chocolate) e a rede Carrefour (maior varejista do setor). Formava-se, assim, acordos entre sindicatos e categorias que influenciavam toda cadeia produtiva.

A Escola Sindical 7 de Outubro, instalada num bairro operário de Belo Horizonte, era considerada pelos dirigentes sindicais europeus e norte-americanos como a mais estruturada escola sindical do planeta. Um prédio imponente de 10 andares que acolhia apartamentos para os cursistas, cozinha e refeitório industriais, um dos melhores teatros da capital mineira, salas de aula, auditórios, uma importante biblioteca dirigida por bibliotecários que lecionavam na UFMG, salas de planejamento e área de lazer (incluindo uma quadra de peteca e um anfiteatro a céu aberto).

Um convênio com o DIEESE forjou o curso de Negociação Coletiva. Dirigentes sindicais formados a partir deste curso não agem meramente por instinto. Adquiriram uma técnica. Passo a relatar alguns aspectos desta técnica porque acredito que grande parte deste conhecimento está sendo colocado em prática por Lula nesses dias.

Comecemos recordando um dos ensinamentos de Maquiavel: um líder político tem que ser misterioso. Se deixa muito nítidas as suas intenções, o adversário saberá como bloqueá-lo logo adiante. Se é errático e misterioso, o oponente o estuda com mais cuidado.

Este ensinamento é importante porque ele é a base do que em negociação sindical se denomina de descoberta do “espaço de negociação”. Este espaço é definido como aquilo que é plausível de negociação pelas duas partes. Ocorre que nenhum negociador experiente abre o jogo sobre o que está disposto a abrir mão. Então, a primeira tarefa numa mesa de negociação é saber o que o outro lado não abre mão em nenhuma hipótese. Se um lado já tem nítido o que não abre mão e consegue esboçar o que o outro lado também não abre mão, está desenhado o “espaço de negociação”. É neste espaço que as negociações reais ocorrerão. Para se desenhar este intervalo de acordo, várias técnicas são utilizadas porque, como já citei, nenhum negociador experiente abre o jogo para o adversário.

Este é o momento de um verdadeiro baile que se desenrola, com muita retórica e uma composição de equipe de negociadores com perfis distintos. Uma mesa de negociação homogênea, além de dar sono na primeira hora de tratativas, não leva a lugar algum. Os negociadores formam um time próximo da técnica do “policial bonzinho e policial mau”, com a diferença que há um terceiro, o moderador. Num jogo de negociação, alguém da equipe endurece o jogo, outro faz o papel de acalmar os ânimos e um terceiro, o líder do time, observa as reações dos opositores. De tempos em tempos é importante uma parada nas negociações para que o time sindical avalie as reações e ajuste a condução na mesa.

O que estou destacando é que antes e durante a primeira parte da negociação há muito diversionismo para testar as reações do outro lado. Antes mesmo de se sentarem à mesa. Faz parte da técnica de negociação. Evidentemente que aos “analistas” da Globonews mais alinhados ideologicamente esse conhecimento escapa porque não conseguem compreender que política é um jogo de xadrez, não uma exposição acadêmica.

Um último aspecto que gostaria de destacar é a organização da pauta que se quer negociar. Um bom plano de negociação nunca começa pelo mais importante. Um bom negociador sindical começa pela pauta social, por exemplo. O menos importante pode ser mais flexibilizado e o sindicalista cede mais facilmente. Na medida que a pauta avança, surgem os temas mais caros ao sindicalista e a negociação se torna mais dura. Ora, se durante a primeira hora de negociação já se cedeu muito, daí para o final, é a outra parte que tem que ceder. Justamente quando entra em cena os assuntos mais caros aos sindicalistas, como a pauta econômica ou salarial.

Os cursos de negociação coletiva começavam com um jogo hipotético de futebol. Os dirigentes eram divididos em dois grupos (em dois “times”) e recebiam algumas instruções sobre os seus jogadores e seus adversários, suas características, seus pontos fracos e pontos fortes. Em seguida, em salas separadas, cada “time” elaborava sua tática de jogo e partiam para a mesa onde estava instalada um jogo de botão. Estudavam as táticas e percebiam como é necessário, numa negociação, compreender e estudar o outro time antes de entrar em campo.

Nos anos 1990, estudava-se muito como os juízes do trabalho julgavam, suas tendências nas diversas instâncias. Era este estudo que definia se partiriam para a judicialização ou forçariam atos políticos de massa.

Estudava-se “matemática sindical”, avaliando as perdas salariais acumuladas no período e as possíveis compensações (vale-refeição, creche, vale-transporte e outros benefícios) não diretamente salariais.
E se discutia e estudava muita técnica de negociação, com muitas simulações para analisar postura, argumentação, retórica, entonação de voz.

Lula não age somente por intuição. Intuição faz parte da percepção sobre o outro com quem negocia. Mas, não basta. É preciso saber bailar.

É por este motivo que, embora seja importante assistir e ler tudo sobre o que ocorre, também vale desconfiar e dar um passo atrás sobre o que os “analistas” políticos das grandes redes de informação dizem. A maioria não tem experiência alguma do jogo jogado. São observadores e são muitas vezes usados pelas suas “fontes”. Uma fonte não diz o que o ator principal realmente pensa. Os bagrinhos instalados em algum órgão ou instância de poder fazem de tudo para serem fontes da grande imprensa por ambições pessoais. São os que entregam fofocas e intrigas palacianas. Mas, as fontes mais qualificadas jogam com os jornalistas. Não dizem tudo, insinuam, e muitas vezes entregam o que pode prejudicar algum de seus desafetos, o que acaba por aumentar seu poder. Em outros casos, acertam com o ator principal o que interessa divulgar ou induzir. Até mesmo para criar o tal diversionismo em períodos de pré-negociação.

Política é um dos jogos mais inteligentes e erráticos que a humanidade já criou. Uma mistura de boxe com xadrez. É isto que Trump faz diariamente. Este jogo tem um craque brasileiro: Lula.

  • Imagem gerada em IA

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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