Mãos Limpas gerou o extremismo de direita na Itália

17 de setembro de 2025, 06:50

Nos anos 1990, a Itália inaugurou o desmantelamento de todo sistema partidário moderno, aquele baseado na representação fiduciária (votamos em quem parece ter uma filosofia geral que nos agrada) e representação delegada (votamos em quem representa o meu grupo, seja do bairro ou da categoria profissional).

Surgia a Operação Mãos Limpas, que o Brasil copiou com a Operação Lava Jato (essa ideia-fixa de passar borracha ou sabão em tudo).

No meio da bagunça generalizada, surgiram dois personagens estranhos que conseguiram plantar o caos em meio à confusão: Beppe Grillo – comediante underground de Genova que lotava seus stand-ups cheios de insultos e provocações – e Gianroberto Casaleggio, especialista em marketing digital.

Gianroberto era o menos visível no caos que se seguiu. Trabalhou por 30 anos na Olivetti e, em seguida, fundou a Casaleggio Associati. Dizia: “A política não me interessa. O que me interessa é a opinião pública”, revelando que vislumbrou a internet como plataforma da revolução da política, guiada pelas preferências dos eleitores capturadas por algoritmos. Grillo aqueceria o ambiente que geraria um movimento político, sendo apolítico.

Casaleggio começou o caos com a criação de um blog. Inicialmente, pela manhã, os colaboradores selecionavam os 10 comentários postados que consideravam mais interessantes. Gianroberto os lia e escrevia um post, assinando como Grillo, a imagem público de todo sistema em gestação. O blog aparecia, então, como uma escuta amplificada dos seguidores. Por trás, a ideia da participação direta. Somente a ideia.

Em pouco tempo, o blog se torna caixa de ressonância do ressentimento com a ordem política e financeira e dá a impressão de que a solução estaria próxima.

O passo seguinte foi o uso da plataforma Meetup, software que possibilita encontros online. Grupos de “Amigos de Beppe Grillo” são criados.

Fazer política não necessitava mais da filiação a um partido. Em 2007, o blog já havia atingido 1 milhão de comentários publicados e os grupos no Meetup já passam de uma centena.

Evolução política

Casaleggio tentou até se aproximar do juiz da Operação Mãos Limpas, Antonio Di Pietro, aliado do PD, de Romano Prodi (ex-primeiro-ministro italiano). Conheci Prodi quando fui filiado à Democratici di Sinistra. Seu breve governo chegou ao Brasil, através do programa Cento Città, uma tentativa de cooperação entre cidades italianas e brasileiras.

O importante aqui é entender o movimento de Casaleggio. Parte da base do movimento criado por ele era jovem e apoiava com entusiasmo as bandeiras progressistas, como a agenda ambiental e trabalhista. Como atirava para todo lado, Casaleggio tentou a sorte, mas Prodi o rejeitou.

Casaleggio, então, convoca seu filho – e futuro sucessor -, Davide, especialista em marketing digital, e desenha um modelo organizativo do Movimento 5 Estrelas.

A estrutura montada dava a impressão de participação da base via blog, mas se tratava efetivamente de um sistema altamente centralizado e controlado: cada seguidor era conectado ao blog e impedido de fazer conexões laterais, com outros participantes. Quem se afastava desta determinação era expressamente expulso e, muitas vezes, recebia uma carta do advogado de Grillo proibindo o uso da logomarca do 5 Estrelas.

Ao contrário, os seguidores que se destacam positivamente eram alçados ao estrelato nas redes sociais (em especial, no Facebook) e promovidos pelo blog, atingindo milhares e até milhão de seguidores em pouco tempo.

Em 2010, Grillo deu um passou maior na direção do totalitarismo. Convocou uma “marcha a Roma” (remetendo à famosa marcha liderada por Mussolini que o levará ao poder). Em 2011, Berlusconi renunciou ao cargo, envolvido em escândalos sexuais e financeiros (foi o Primeiro-ministro da Itália entre 1994 e 1995, 2001 e 2006 e entre 2008 e 2011). O blog de Casaleggio avança no sinal e destaca que “eles são todos iguais e nos arruinaram”.

Em 2012, o blog passa a produzir informações e se transforma num portal exclusivo dos seus seguidores. Suas matérias são destacadas com expressões sensacionalistas como “Vergonhoso” ou “Péssima Notícia” ou “Isto é a Itália!”.

Em 2013, o Movimento se atira nas eleições e atinge 25% dos votos, elegendo 163 deputados, que o torna o partido mais votado da Itália. Os deputados eleitos são instados a entregar suas senhas para os controladores do blog.

Neste ano, o blog cria uma nova coluna: “Jornalista do Dia”, atacando repórteres que criticavam o movimento.

Em 2016, o Movimento 5 Estrelas lança Virginia Raggi, advogada sem qualquer experiência política, à prefeitura de Roma. Casaleggio a obriga a assinar um documento em que define que todas propostas da alta administração serão submetidas a um staff coordenado pelo Movimento. Também impõe que os anúncios oficiais serão feitos pelo blog, não pelo site da prefeitura.

Neste ano, Gianroberto falece e seu filho assume a empresa. A partir daí, o movimento começa a definhar.

Davide, numa entrevista ao Corriere dela Sera afirma:

“Nós garantimos um melhor serviço e somos mais eficazes em trazer as aspirações dos cidadãos às instituições. A velha partidocracia é como uma videolocadora, enquanto nós somos como a Netflix”.

O Movimento 5 Estrelas foi a primeira organização política que elabora um programa estruturado a partir de um ranking de notícias, ao estilo do Google.

Aqui no Brasil, a manipulação e excitação das bases bolsonaristas segue um script um pouco diferente, mas não tão distante da experiência do 5 Estrelas. A Câmara de Deputados gera factoides e ameaças semanalmente, procurando demonstrar força e desdenhar das instituições públicas. A base bolsonarista se alegra e se comporta como torcedor de time de futebol, que nada ganha com a vitória do campeonato, mas festeja como se seu salário aumentasse no dia seguinte.

Este movimento de ameaças semanais é concentrada na Câmara de Deputados, que funciona como o blog criado por Casaleggio. Todos seguem a bancada bolsonarista da Câmara, incluindo a grande imprensa. Da PEC da Blindagem à PEC da Anistia, passando pelo anúncio de Eduardo Bolsonaro como líder da minoria e até mesmo a exploração da ida de Jair ao hospital. Tudo se torna uma ofensiva midiática do bolsonarismo que prende a atenção da base bolsonarista. E não apenas ela. Não há blog que centraliza tudo, mas há celulares alimentados por bravatas, ameaças e tomada da mesa diretora.

Enfim, o que importa não é exatamente a política, mas a opinião pública.

  • O símbolo do Movimento 5 Estrelas e a construção do primeiro movimento político cuja plataforma totalitária se baseava no ranking de opiniões de seus seguidores.

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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