
MCTI confirma proposta de veto à presença da Anatel no ECA Digital

A “Assessora Especial” do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, jornalista Renata Mielli, procurou o site Teletime para rebater as informações dadas por este blog – Capital Digital. Mielli, que também é Coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), alega que há “vício de iniciativa”, o fato do Congresso Nacional ter dado competência para a Anatel suspender nos provedores de Serviços de Valor Adicionado, as atividades de plataformas da Internet que estejam descumprindo dispositivos legais que protegem crianças e adolescentes dos conteúdos nocivos no ambiente digital.
Disse ao veículo de imprensa especializado do setor de Telecomunicações, que não tem nada contra a Anatel, mas confirmou que o MCTI está recomendando o veto aos parágrafos 6º e 7º do Artigo 35 do ECA Digital, que ainda aguarda a sanção presidencial. Segundo ela o assunto somente foi à público porque “vazaram a informação”. Que no entender deste blog deveria ser pública.
Controvérsia
A alegação de Renata Mielli de que há um “vício de iniciativa” na designação da Anatel pelo ECA Digital para o bloqueio de rede social que esteja propagando pedofilia e outros crimes contra crianças e adolescentes é um tanto polêmica. Até porque, trata-se de uma discussão que mais parece como “chover no molhado”. No ECA Digital o legislador apenas ratificou aquilo que já tem sido obrigação da Anatel: bloquear por ordem judicial a rede social que ferir a legislação brasileira. Fato que até agora vinha sendo executado pela agência apenas através das redes das empresas de telecomunicações.
O “vício de iniciativa” alegado por Renata para tirar a Anatel não parece ser a melhor definição de extrapolação da competência do legislador que escolheu a Anatel para ser a executora dos bloqueios. No Direito Constitucional brasileiro o “vício de iniciativa” é um termo utilizado para definir quando uma legislação é aprovada por proposta de um poder que não tem a competência para apresentá-lo. Seria, por exemplo, deputados e senadores decidirem mexer na estrutura administrativa do Poder Executivo, que é uma atribuição do Presidente da República.
Os parágrafos 6º e 7º do Artigo 35 do Eca Digital, não conferem à Anatel poderes para regular Serviço de Valor Adicionado (Internet). Apenas determinam que, a suspensão temporária das atividades ou a proibição de exercício das atividades de uma rede social, quando não forem realizadas de boa vontade pelo próprio infrator, serão feitas mediante “ordem de bloqueio dirigida às prestadoras de serviços de telecomunicações”.
No texto da lei foi inserido a mesma ordem para a Anatel escolher se faz o bloqueio por meio das teles ou se procura com o mesmo objetivo “os gestores de pontos de troca de tráfego de internet, os prestadores de serviços de resolução de nomes de domínio e aos demais agentes que viabilizam a conexão entre usuários e servidores de conteúdo na internet” (parágrafo 6º). No parágrafo 7º o legislador apenas ratificou que caberá à “Agência Nacional de Telecomunicações encaminhar as ordens de bloqueio previstas no § 6º deste artigo, facultada a ela a definição da técnica mais adequada para a sua implementação”.
Não há portanto, nos dois dispositivos da lei, nenhuma possibilidade da Anatel regular a Internet, conforme alega a representante do CGI.br.
O máximo que se poderia questionar junto ao STF seria se a Anatel não estaria cometendo inconstitucionalidade material, por desvio da finalidade regulatória, violação à separação de poderes e que afronta à Lei Geral de Telecomunicações, que não definiu o papel da agência como reguladora no Serviço de Valor Adicionado (Internet).
Mas não houve da parte dos parlamentares no Congresso, alguma decisão que possa ser interpretada que a Anatel ganhou poderes para regular o Serviço de Valor Adicionado (SVA). Ao contrário, apenas tornou claro um papel que a agência já vinha exercendo: a de ser a executora de ordem judicial para bloquear as plataformas de Internet através das empresas de telecomunicações e que agora com a aprovação do ECA Digital, também fica autorizada a interferir nas empresas que prestam o SVA, quando estiverem descumprindo a legislação que protege crianças e adolescentes. Nada mais que isso.
Apagão na rede
A decisão de inserir no ECA Digital a determinação para que a Anatel atenda ordem judicial e faça o bloqueio das big techs nas empresas de telefonia e também através dos Pontos de Troca de Tráfego (PTTs – geridos pelo Nic.br) ou nos serviços de resolução de nomes de domínio (DNS e CDN – Google, Cloudflare, OpenDNS, Akamai e empresas nacionais), do ponto de vista técnico é uma decisão politicamente inviável e até temerária. É muito mais preocupante do que essa pífia discussão sobre a competência constitucional da Anatel de regular a internet brasileira levantada pela Coordenadora do CGI.br, Renata Mielli.
Já houve um episódio em que a Anatel interferiu na Rede de Distribuição de Conteúdo (CDN) operada pela empresa Cloudflare, o que não era a sua atribuição regulatória, mas a agência cumpriu determinação judicial. A Cloudfare é uma empresa que utiliza servidores globais para melhorar o desempenho e a velocidade dos sites na Internet, prestando serviços de proteção contra ataques maliciosos e de armazenamento de cópias das páginas de diversos clientes.
Em setembro do ano passado, a Anatel depois de ter bloqueado a Plataforma “X” através dos IPs dela nas redes de telecomunicações, a agência foi obrigada a procurar a Cloudfare, para pedir que a empresa adotasse a mesma medida já executada pelas teles. Isso porque, mesmo após ter sido bloqueada nas redes de telecomunicações pela Anatel, a big tech se valeu dos IPs distribuídos no Brasil pela Cloudfare para mascarar a sua presença e continuar “no ar” na Internet brasileira, ainda que de forma precária.
A Cloudfare acabou atendendo o pedido da Anatel e bloqueou os IPs da big tech, mesmo sabendo que não era obrigada a fazê-lo, porque a agência reguladora não tinha competência de interferir nas atividades de empresas que prestam Serviços de Valor Adicionado (SVA). Essa atribuição só passou a contar agora com o ECA Digital, caso o dispositivo não seja vetado pelo presidente Lula.
Só que esses poderers conferidos agora pelo Congresso Nacional deixam a Anatel numa posição vulnerável. Por exemplo: e se a Cloudfare negasse o pedido da agência para bloquear os IPs da plataforma “X”?
Neste caso, a agência reguladora teria de mandar as teles bloquearem os IPs desta empresa, o que seria a tempestade perfeita na Internet brasileira. Se tal ocorresse haveria um efeito colateral massivo em diversas páginas de outras instituições, porque diversos sites de empreas, bancos, do comércio em geral, etc; deixariam de funcionar.
Por exemplo, páginas na Internet de instituições financeiras que usam os serviços da Cloudfare para proteção contra ataques DDoS e aceleração de tráfego seriam prejudicadas: Nubank, Banco Inter, C6 Bank, PagSeguro, PicPay, etc; acabariam saindo do ar. No comércio eletrônico também seriam prejudicados pelo bloqueio as empresas como a Magazine Luiza (Magalu), Lojas Americanas, Mercado Livre, Shopee, OLX, etc. Todois que usassem a Cloudfare acabariam “fora do ar”.
A solução seria redirecionar essas páginas para outros endereços IP, mas não seria uma tarefa imediata, demandaria tempo e haveria desgaste político junto aos internautas, que ficariam impedidos de navegar e obter serviços financeiros ou comerciais através da Internet. Imaginem o impacto para a Anatel, o judiciário e o governo um evento desses? Por isso, a possibilidade que o legislador concedeu à Anatel para também bloquear na Internet é interpretada como um “tiro de canhão para matar uma andorinha”.
Equívoco
“Na reunião eu representava o ministério, e não existe, por parte do MCTI, uma indisposição com o papel legal da Anatel. A agência ocupa o seu papel previsto na LGT de regular as empresas de infraestrutura e serviços de telecomunicações, assim como cabe ao Comitê Gestor da Internet uma atuação sobre a camada lógica, como os pontos de troca de tráfego, e sobre o registro de domínios”, disse a assessora ao site Teletime.
Não dá para comparar a atribuição legal que cada um tem conforme fez Renata Mielli. Parece até que a coordenadora desconhece as atribuições e o papel que desempenha o Comitê Gestor da Internet no Brasil. O CGI.br é um organismo criado por decreto, com governança multissetorial e sem personalidade jurídica própria.
Não desempenha o papel de uma agência reguladora como a Anatel, pois não tem competência para criar normas, aplicar sanções, fiscalizar, ou executar bloqueios dos serviços prestados na Internet. A função dele tem sido apenas o de deliberar sobre princípios, diretrizes e fazer recomendações para a Internet no Brasil (como fez por exemplo, quando deu o norte para o Congresso criar e aprovar o Marco Civil da Internet).
Da mesma forma O Nic.br é uma entidade privada “sem fins lucrativos”, criada para executar as decisões do CGI.br. Sua função é manter em operação a infraestrutura crítica da Internet no Brasil (.br, PTTs, estatísticas, CERT.br). O NIC atua no registro de domínios, troca de tráfego, e nos incidentes de segurança. Mas não tem competência legal para bloquear tráfego ou sites por ordem própria. Até seria questionável esse tipo de atuação, pois se tentasse agir como “filtro de conteúdo” na Internet acabaria perdendo a neutralidade técnica que é a razão da sua existência.
Brecha
A eventual recomendação de veto do MCTI, se acatada pelo presidente Lula, não afetará o papel da Anatel no cumprimento de suas atribuições junto às redes de telecomunicações. Mas continuará deixando uma brecha técnica que não terá solução no cenário da Internet. Ter o dispositivo para atuar em caso de necessidade junto aos provedores de serviço de valor adicionado é a garantir de não permitir que brechas legais ocorram como já ocorreu com a rede X.
Mesmo sendo o uso de um “canhão para matar uma andorinha”, que acabaria arrasando todo um “quarteirão”, ainda é melhor ter a possibilidade de bloquear o IP nos provedores de SVA do que não dispor de nenhuma ferramenta para usar. De não ser capaz depois de interferir no processo.
Desta vez a Cloudfare aceitou desligar os IPs da big tech a pedido da Anatel. Mas como será amanhã o comportamento desta empresa e de outras que prestam serviços de distribuição de IPs, ao saberem que Lula acatou a proposta do MCTI e o governo deixa de ter um instrumento para impedir futuros abusos das big techs?
*Somente porque considerou inconstitucional a Anatel “invadir” uma área que não é regulada por ela e não tem controle legal de ninguém?
- “Assessora Especial” do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, jornalista Renata Mielli, coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Reprodução