
Mirou no sol e acertou na lua

Durante uma apresentação recente no Altas Horas, o cantor Toni Garrido decidiu alterar um verso clássico da música Girassol, do grupo Cidade Negra. Onde antes se cantava “a grandeza de um menino”, ele preferiu dizer “a grandeza de uma menina, de uma mulher”. O gesto, segundo ele, foi uma tentativa de corrigir o que chamou de “machismo hétero top” de uma letra escrita há décadas. A cena, ainda que pareça inocente, é sintoma de algo mais profundo: o avanço de um identitarismo exagerado, travestido de virtude, que confunde pautas fundamentais com gestos simbólicos e moralismos superficiais.
O episódio é revelador de uma época em que boa parte da militância cultural trocou o conteúdo pela forma, a transformação pela performance, o debate pela patrulha. Não se trata aqui de negar a importância das causas identitárias, que nasceram de feridas reais — racismo, misoginia, homofobia, desigualdade. Trata-se de perceber quando o discurso da reparação se transforma em liturgia moral, e quando a defesa da diferença passa a ser, paradoxalmente, intolerante com a própria diversidade de pensamento.
Ao mudar um verso de uma canção antiga, Toni Garrido acreditou estar prestando homenagem às mulheres. No entanto, ao fazê-lo, revelou um tipo de medo típico de nosso tempo: o medo de ser mal interpretado. E esse medo tem se tornado um tipo de censura travestida de sensibilidade. O identitarismo exacerbado vem se impondo como uma nova forma de ortodoxia, julgando o passado com os critérios morais do presente, reescrevendo letras, silenciando obras, e transformando artistas em réus de uma moral pública cada vez mais impaciente e vaidosa. É uma espécie de puritanismo moderno, que substitui a fé religiosa pela fé ideológica.
Como bem alerta Antônio Risério, em A Crise da Política Identitária, o debate humano foi sequestrado por uma lógica de antagonismos, onde o ser é reduzido a etiquetas: homem ou mulher, branco ou negro, opressor ou oprimido. Essa simplificação empobrece a arte e esteriliza o pensamento. O identitarismo, ao invés de ampliar o diálogo, frequentemente o sufoca. E a cultura, que deveria ser espaço da ambiguidade e da contradição, passa a ser um campo minado onde qualquer palavra pode ofender. Mércio Gomes, na orelha do mesmo livro, lembra que o identitarismo se dirige, sobretudo, a um público intelectualizado, muitas vezes prisioneiro de suas próprias bolhas morais. Entre argumentos e boas intenções, há uma enorme confusão entre o que é simbólico e o que é essencial.
Trocar uma palavra numa canção, eliminar uma expressão, censurar uma piada — nada disso muda a realidade concreta das mulheres, dos negros, dos pobres. O que muda o mundo é o que transforma a estrutura, não o que enfeita o discurso. Quando o ativismo se torna espetáculo, ele perde a força e se aproxima da caricatura. A arte não precisa ser domesticada para ser justa, nem revisada para ser ética. A arte é, por natureza, espaço de contradição — e é justamente ali, nesse terreno instável e humano, que mora sua potência transformadora.
O identitarismo exagerado, ao tentar purificar tudo o que toca, acaba esterilizando o erro, o risco, a dúvida, o que há de mais rico na criação. A história da cultura é feita de obras que desafiaram o senso comum de suas épocas, e não que se curvaram a ele. O medo de ofender tem feito mais pela mediocridade do que pela justiça.
Não há nada mais perigoso para uma sociedade do que a ilusão de que se pode corrigir o passado apagando suas rugas. Nem nada mais triste do que ver a música, esse território da liberdade e da emoção, se curvar à rigidez dos slogans.
O identitarismo é uma causa necessária quando busca o justo. Mas quando se torna exagero, perde-se o sentido.
O identitarismo – essa palavra estranha – é, no fim, uma linha muito tênue entre o justo e a vergonha alheia.