Missionários invasores: neopentecostais usam drones, hidroaviões e gadgets ilegais para evangelizar povos isolados

6 de agosto de 2025, 15:00

O marketing neopentecostal, decidido a se tornar a religião hegemônica no Brasil, tem viajado para fronteiras imorais, o que foi intensificado durante o governo Bolsonaro – afinal, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Para quem visualiza a abordagem cristã à moda antiga, um voluntário, ou “obreiro”, distribuindo pacificamente panfletos e vendendo livros nas ruas e praias, reveja seus conceitos. Os evangélicos têm utilizado estratégias cada vez mais sofisticadas e tecnológicas para promover suas pregações e expandir suas igrejas, combinando técnicas de marketing e uso intensivo de mídias digitais. YouTube, Instagram e TikTok são cotidianamente utilizados para transmitir cultos ao vivo, compartilhar mensagens e interagir com fiéis. Pulverizam, ainda, a venda de áudio-bíblias protestantes nos sites de comercio eletrônico – a HarperCollins no Brasil concentra mais de um terço do mercado de publicações religiosas no país -, financiam eventos de grande porte e até cooptam motoristas de Uber e aplicativos de transporte crentes para fazer pregações no trajeto, ditribuir “santinhos” e sintonizar em rádios gospel, à revelia do gosto do passageiro. Uma noite, reclamei de um e ele respondeu: “Esse é meu escritório de evangelização”. Mais grave: numa atitude, no mínimo, de corrupção religiosa com os povos originários, vêem invadindo a Amazônia, via hidroaviões, para alcançar e evangelizar povos não contatados, ameaçando a saúde e cultura de tribos. Como a Korubo, no Vale do Javari, no estado do Amazonas, região com a maior concentração de povos isolados no país, em flagrante conflito de interesses com a Constituição de 1988.

Índios Korubo contatados em 2015: a lei determina que iniciativas de aproximação com grupos isolados devem partir deles próprios, cabendo ao governo federal proteger suas terras. Foto: Funai/Agência O Globo

Alguém vai lembrar: e a catequização dos índios pelos jesuítas nos primórdios do descobrimento do Brasil, quando se buscava que os indígenas aprendessem a língua portuguesa para a leitura de trechos bíblicos e o ensino da prática religiosa católica. São, obviamente, realidades históricas totalmente distintas, interesses e métodos diversos, embora possa-se sempre condenar a catequização na marra, ainda mais de povos originários, na época conduzida pela chamada Companhia de Jesus. Mas não se pode comparar a ignorância étnica do período colonial ao planejamento estratégico dos tempos de hoje, feito pelos neopentecostais tecnológicos, como Sila Malafaia, R.R. Soares e Estevam Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo, Hernandes é responsável por eventos como a Marcha para Jesus. Todos com gravadoras, editoras e canais de TV e rádio, consolidando suas presenças na mídia religiosa. Mas a catequização de índios isolados tem um requinte à parte.

Povos originários catequizados pelas corporações evangélicas

Imagem aérea do Vale do Javari, região com maior concentração de indígenas isolados do mundo. Foto: Gleison Miranda/Funai.

No governo Bolsonaro – que a tornozeleira eletrônica o tenha -, a histórica Fundação Nacional do Índio (Funai) foi cooptada, nomeando, em 2020,como responsável pela proteção de povos isolados, o pseudo-antropólogo e missionário evangélico Ricardo Lopes Dias – apesar dos alertas do Ministério Público Federal (MPF), que apontou conflito de interesses -, que tinha ligação com missões evangelizadoras de indígenas, incluindo estrangeiras. Com ele, abriram-se as fronteiras para os “modernos” missionários de índios, regredindo cinco séculos. A holding neopentecostal na Amazônia ganhou o nome pomposo de Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), atuando entre 1997 e 2007,especialmente no já citado Vale do Javari. Lopes Dias, inclusive, é acusado de omissão diante da crise sanitária de Covid-19, não tendo colocado em prática um plano de contingência eficiente contra o coronavírus. Acabou, tardiamente, exonerado.

Missionário evangélico Ricardo Lopes Dias, nomeando no governo Bolsonaro como responsável pela proteção de povos isolados, tinha ligação com missões evangelizadoras de indígenas isolados e foi omisso na defesa dos povos durante o Coronavírus. Foto: Mário Vilela/Funai.

Lopes Dias chegou a fundar a Primeira Igreja Batista de Guaianases (SP), com foco na formação de futuros ministros que dariam a continuidade ao trabalho por ele iniciado. A evangelização de povos indígenas, ainda mais os isolados, contraria a política oficial da Funai. Mas já estava aberta a porta para que grupos evangélicos cristãos, apoiados pelos EUA, que passaram a recorrer a inovações tecnológicas para contornar as restrições. A maioria dessas organizações faz vaquinhas virtuais para financiar as ações, como a formação de pastores-pilotos e sua tradução muito particular da Bíblia para o idioma nativo das comunidades. “Nós respeitamos os governos até o ponto em que eles falam contra a palavra de Deus. A palavra de Deus [está] acima de tudo”, chegou a declararar o missionário evangélico norte-americano Andrew Tonkin, processado no Brasil por invasão de terras indígenas.

O missionário norte-americano Andrew Tonkin, missionário de índios e líder do “Frontier International Mission”, que se intitula “um ministério batista de livre arbítrio”. Foto: Reprodução / Facebook

O religioso chegou a reunir índios convertidos e outros integrantes da organização “Frontier International” para fazer uma expedição ao Igarapé Lambança, território habitado por indígenas não contatados, no interior do Vale do Javari. A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) confirmou , na época,que foi avisada sobre os planos dos missionários liderados por Tonkin. Para controlar a situação, a Univaja entrou em 2020 com ação na Justiça Federal para pedir a expulsão de missionários que estavam fazendo operações em busca do povo Korubo, considerado de recente contato. No ano passado, a pedido da Funai, a Justiça Federal suspendeu a exibição do documentário “A Invenção do Outro”, que utiliza imagens do povo Korubo sem autorização dos indígenas.

Hidroavião monomotor usado pelos missionários nos sobrevoos às aldeias no Vale do Javari . Na foto, Wilson Kannenberg e Andrew Tonkin atrás do indígena Foto: Facebook/Reprodução

Outro processado foi o o missionário-piloto Wilson Kannenberg. Ele é ligado à norte-americana “Asas de Socorro”, uma organização cristã missionária que fornece apoio logístico, incluindo aviões, para áreas remotas. Kannenberg fez viagens de hidroavião para acessar o Vale do Javari e tentar burlar a fiscalização que impede a entrada no território. Mas ainda proliferam ações neopentecostais dispostas a evangelizar os povos originários. O Ethnos360 – antigamente batizada de Missão Novas Tribos dos Brasil – mantém arrecadações abertas para financiar traduções do livro sagrado dos cristãos para os idiomas de povos originários de diferentes localidades do planeta.

O missionário-piloto norte-americano Wilson Kannenberg, do Asas do Socorro. Viagens para a Amazônia e bases evangelizadoras na região. Foto: Reprodução/Redes sociais

No site da instituição, é possível doar dinheiro diretamente para o trabalho de cada um dos missionários, mesmo que a página não especifique o que fazem e o município onde atuam. Haveria dezenas de missionários atuando no Brasil. Outro site ligado às missões estrangeiras é o Joshua Project. A entidade tenta atrair religiosos para atuar no Brasil, com mapas de locais onde as atividades devem ser desenvolvidas.

Imagem do cabeça do The Joshua Project, “reverendo” Kinglesley Armonstrang, outro invasor de Amazônia – e outras áreas do planeta – para panfletar sua fé. Reprodução do site The Joshua Project.

Tornou-se comum distribuir entre os indigenas um gadget chamado de Korubo, propriedade da In Touch Ministries, organização batista sediada em Atlanta, nos EUA. Objetvivo: evangelizar povos indígenas isolados na Amazônia, próximo à fronteira entre o Brasil e o Peru. Nos aparelho, são reproduzidas passagens da Bíblia e palestras de um pastor americano. A população local relatou a existência de unidades do dispositivo de áudio no território. Contendo mensagens bíblicas em português e espanhol, os aparelhos foram encontrados em territórios protegidos por medidas governamentais rigorosas no Vale do Javari. Além dos dispositivos de áudio dos missionários, movidos a energia solar, drones têm sido observados na região com frequência. As aeronaves não tripuladas aparecem principalmente no final da tarde e os policiais que atuam no posto de proteção na entrada do território já tentaram abatê-los, mas não conseguiram. O Ministério Público Federal tem acompanhado o caso para garantir os direitos dos povos isolados.

Recentemente, o Congresso aprovou o que lá fora se chama “devastation bill”, ou ‘projeto de lei da devastação’, que enfraquece drasticamente a legislação ambiental. A nova lei, aprovada no Congresso, apesar da oposição de mais de 350 organizações e movimentos sociais, estabelece que os órgãos responsáveis pela proteção dos direitos das comunidades indígenas e quilombolas só terão voz ativa nos processos de licenciamento de projetos localizados em territórios oficialmente reconhecidos — excluindo mais de 30% das terras indígenas e mais de 80% das áreas quilombolas que aguardam titulação oficial há anos. Muitas dessas terras já estão em disputa ou sendo alvo de empresas exploradoras. Na prática, segundo organizações internacionais, como o Instituto Socioambiental (ISA), o projeto revogaria a proteção de 18 milhões de hectares no Brasil, o equivalente ao tamanho do Uruguai. O presidente Lula pode vetar o projeto.

Compostos por cerca de 100 grupos isolados na floresta amazônica brasileira , mais gente do que em qualquer lugar do mundo, os povos isolados têm consciência do mundo exterior e alguns têm relações comerciais limitadas com os vizinhos – mas a maioria optou por viver em isolamento voluntário. E com razão: o contato quase sempre foi desastroso. Organizações e ativistas indígenas afirmam ser crucial reafirmar a política de não contato. Tecnologias de alcance, como Bíblias em áudio, podem parecer curiosidades inofensivas, mas a infiltração de crenças religiosas e culturais estrangeiras tem um poder destrutivo para os grupos indígenas. A exposição à linguagem e aos conceitos “colonizadores” acaba por corromper a essência da cultura local.

  • Bíblia e avião: missionários invadem áreas de povos isolados para evangelizar indígenas com ideologia conservadora e estratégias criticadas, como ofertas em dinheiro. Crédito da imagem: Marian Femenias-Moratino /Getty Images.
  • Obs: Última atualização 15h, que exigiu repostagem

Escrito por:

Jornalista há 40 anos, já foi repórter e editor nos maiores veículos do país - O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Correio Braziliense, Istoé - assessor de imprensa, analista sênior de informações e/ou ex-diretor de agências de comunicação corporativa - FSB Comunicação, Santafé Ideias, entre outras -, ex-professor de Jornalismo da PUC-RJ, trabalhou no Senado Federal e na Prefeitura do Rio. Já foi assíduo colaborador dos sites Os Divergentes e DCM. E criador, com meu irmão Paulo Henrique, da revista cultural Tablado, que durou 20 anos a acabou na pandemia. Premiado, entre outros, com Prêmio Esso, Embratel e Herzog. E, PRINCIPALMENTE, pai do Bruno e da Gabriela, orgulhos da minha vida.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *