
Missionários invasores: neopentecostais usam drones, hidroaviões e gadgets ilegais para evangelizar povos isolados
O marketing neopentecostal, decidido a se tornar a religião hegemônica no Brasil, tem viajado para fronteiras imorais, o que foi intensificado durante o governo Bolsonaro – afinal, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Para quem visualiza a abordagem cristã à moda antiga, um voluntário, ou “obreiro”, distribuindo pacificamente panfletos e vendendo livros nas ruas e praias, reveja seus conceitos. Os evangélicos têm utilizado estratégias cada vez mais sofisticadas e tecnológicas para promover suas pregações e expandir suas igrejas, combinando técnicas de marketing e uso intensivo de mídias digitais. YouTube, Instagram e TikTok são cotidianamente utilizados para transmitir cultos ao vivo, compartilhar mensagens e interagir com fiéis. Pulverizam, ainda, a venda de áudio-bíblias protestantes nos sites de comercio eletrônico – a HarperCollins no Brasil concentra mais de um terço do mercado de publicações religiosas no país -, financiam eventos de grande porte e até cooptam motoristas de Uber e aplicativos de transporte crentes para fazer pregações no trajeto, ditribuir “santinhos” e sintonizar em rádios gospel, à revelia do gosto do passageiro. Uma noite, reclamei de um e ele respondeu: “Esse é meu escritório de evangelização”. Mais grave: numa atitude, no mínimo, de corrupção religiosa com os povos originários, vêem invadindo a Amazônia, via hidroaviões, para alcançar e evangelizar povos não contatados, ameaçando a saúde e cultura de tribos. Como a Korubo, no Vale do Javari, no estado do Amazonas, região com a maior concentração de povos isolados no país, em flagrante conflito de interesses com a Constituição de 1988.

Alguém vai lembrar: e a catequização dos índios pelos jesuítas nos primórdios do descobrimento do Brasil, quando se buscava que os indígenas aprendessem a língua portuguesa para a leitura de trechos bíblicos e o ensino da prática religiosa católica. São, obviamente, realidades históricas totalmente distintas, interesses e métodos diversos, embora possa-se sempre condenar a catequização na marra, ainda mais de povos originários, na época conduzida pela chamada Companhia de Jesus. Mas não se pode comparar a ignorância étnica do período colonial ao planejamento estratégico dos tempos de hoje, feito pelos neopentecostais tecnológicos, como Sila Malafaia, R.R. Soares e Estevam Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo, Hernandes é responsável por eventos como a Marcha para Jesus. Todos com gravadoras, editoras e canais de TV e rádio, consolidando suas presenças na mídia religiosa. Mas a catequização de índios isolados tem um requinte à parte.
Povos originários catequizados pelas corporações evangélicas

No governo Bolsonaro – que a tornozeleira eletrônica o tenha -, a histórica Fundação Nacional do Índio (Funai) foi cooptada, nomeando, em 2020,como responsável pela proteção de povos isolados, o pseudo-antropólogo e missionário evangélico Ricardo Lopes Dias – apesar dos alertas do Ministério Público Federal (MPF), que apontou conflito de interesses -, que tinha ligação com missões evangelizadoras de indígenas, incluindo estrangeiras. Com ele, abriram-se as fronteiras para os “modernos” missionários de índios, regredindo cinco séculos. A holding neopentecostal na Amazônia ganhou o nome pomposo de Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), atuando entre 1997 e 2007,especialmente no já citado Vale do Javari. Lopes Dias, inclusive, é acusado de omissão diante da crise sanitária de Covid-19, não tendo colocado em prática um plano de contingência eficiente contra o coronavírus. Acabou, tardiamente, exonerado.

Lopes Dias chegou a fundar a Primeira Igreja Batista de Guaianases (SP), com foco na formação de futuros ministros que dariam a continuidade ao trabalho por ele iniciado. A evangelização de povos indígenas, ainda mais os isolados, contraria a política oficial da Funai. Mas já estava aberta a porta para que grupos evangélicos cristãos, apoiados pelos EUA, que passaram a recorrer a inovações tecnológicas para contornar as restrições. A maioria dessas organizações faz vaquinhas virtuais para financiar as ações, como a formação de pastores-pilotos e sua tradução muito particular da Bíblia para o idioma nativo das comunidades. “Nós respeitamos os governos até o ponto em que eles falam contra a palavra de Deus. A palavra de Deus [está] acima de tudo”, chegou a declararar o missionário evangélico norte-americano Andrew Tonkin, processado no Brasil por invasão de terras indígenas.

O religioso chegou a reunir índios convertidos e outros integrantes da organização “Frontier International” para fazer uma expedição ao Igarapé Lambança, território habitado por indígenas não contatados, no interior do Vale do Javari. A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) confirmou , na época,que foi avisada sobre os planos dos missionários liderados por Tonkin. Para controlar a situação, a Univaja entrou em 2020 com ação na Justiça Federal para pedir a expulsão de missionários que estavam fazendo operações em busca do povo Korubo, considerado de recente contato. No ano passado, a pedido da Funai, a Justiça Federal suspendeu a exibição do documentário “A Invenção do Outro”, que utiliza imagens do povo Korubo sem autorização dos indígenas.

Outro processado foi o o missionário-piloto Wilson Kannenberg. Ele é ligado à norte-americana “Asas de Socorro”, uma organização cristã missionária que fornece apoio logístico, incluindo aviões, para áreas remotas. Kannenberg fez viagens de hidroavião para acessar o Vale do Javari e tentar burlar a fiscalização que impede a entrada no território. Mas ainda proliferam ações neopentecostais dispostas a evangelizar os povos originários. O Ethnos360 – antigamente batizada de Missão Novas Tribos dos Brasil – mantém arrecadações abertas para financiar traduções do livro sagrado dos cristãos para os idiomas de povos originários de diferentes localidades do planeta.

No site da instituição, é possível doar dinheiro diretamente para o trabalho de cada um dos missionários, mesmo que a página não especifique o que fazem e o município onde atuam. Haveria dezenas de missionários atuando no Brasil. Outro site ligado às missões estrangeiras é o Joshua Project. A entidade tenta atrair religiosos para atuar no Brasil, com mapas de locais onde as atividades devem ser desenvolvidas.

Tornou-se comum distribuir entre os indigenas um gadget chamado de Korubo, propriedade da In Touch Ministries, organização batista sediada em Atlanta, nos EUA. Objetvivo: evangelizar povos indígenas isolados na Amazônia, próximo à fronteira entre o Brasil e o Peru. Nos aparelho, são reproduzidas passagens da Bíblia e palestras de um pastor americano. A população local relatou a existência de unidades do dispositivo de áudio no território. Contendo mensagens bíblicas em português e espanhol, os aparelhos foram encontrados em territórios protegidos por medidas governamentais rigorosas no Vale do Javari. Além dos dispositivos de áudio dos missionários, movidos a energia solar, drones têm sido observados na região com frequência. As aeronaves não tripuladas aparecem principalmente no final da tarde e os policiais que atuam no posto de proteção na entrada do território já tentaram abatê-los, mas não conseguiram. O Ministério Público Federal tem acompanhado o caso para garantir os direitos dos povos isolados.
Recentemente, o Congresso aprovou o que lá fora se chama “devastation bill”, ou ‘projeto de lei da devastação’, que enfraquece drasticamente a legislação ambiental. A nova lei, aprovada no Congresso, apesar da oposição de mais de 350 organizações e movimentos sociais, estabelece que os órgãos responsáveis pela proteção dos direitos das comunidades indígenas e quilombolas só terão voz ativa nos processos de licenciamento de projetos localizados em territórios oficialmente reconhecidos — excluindo mais de 30% das terras indígenas e mais de 80% das áreas quilombolas que aguardam titulação oficial há anos. Muitas dessas terras já estão em disputa ou sendo alvo de empresas exploradoras. Na prática, segundo organizações internacionais, como o Instituto Socioambiental (ISA), o projeto revogaria a proteção de 18 milhões de hectares no Brasil, o equivalente ao tamanho do Uruguai. O presidente Lula pode vetar o projeto.
Compostos por cerca de 100 grupos isolados na floresta amazônica brasileira , mais gente do que em qualquer lugar do mundo, os povos isolados têm consciência do mundo exterior e alguns têm relações comerciais limitadas com os vizinhos – mas a maioria optou por viver em isolamento voluntário. E com razão: o contato quase sempre foi desastroso. Organizações e ativistas indígenas afirmam ser crucial reafirmar a política de não contato. Tecnologias de alcance, como Bíblias em áudio, podem parecer curiosidades inofensivas, mas a infiltração de crenças religiosas e culturais estrangeiras tem um poder destrutivo para os grupos indígenas. A exposição à linguagem e aos conceitos “colonizadores” acaba por corromper a essência da cultura local.
- Bíblia e avião: missionários invadem áreas de povos isolados para evangelizar indígenas com ideologia conservadora e estratégias criticadas, como ofertas em dinheiro. Crédito da imagem: Marian Femenias-Moratino /Getty Images.
- Obs: Última atualização 15h, que exigiu repostagem