
Não há heróis nessa história

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal começa a definir nesta terça-feira (02.09.2025) o destino de Jair Bolsonaro, o sociopata absorvido pela política que planejou um golpe de Estado e, para bem do Brasil, não o executou por covardia e incompetência. É um julgamento histórico e, dentro da normalidade em que o país vive, uma rotunda afirmação da democracia brasileira. Os golpistas serão julgados dentro das regras do Estado de Direito, nas quais se sobressai a ampla defesa tantas vezes pisoteada pelo próprio réu. Nenhum outro criminoso que tenha passado pelo STF abusou tanto da impunidade como Bolsonaro. Sem a necessidade de que a justiça se afastasse “das quatro linhas” da lei ou do direito, deveria ter sido preso quando voltou dos Estados Unidos, em março de 2023.
O mundo jurídico conformista tece elogios ao conteúdo dos autos: uma investigação bem feita e uma denúncia tecnicamente firme e assertiva, o que, pelo que é possível prever, não deixará margem que não seja discutir filigranas que poderiam apenas atenuar a pesada pena contra os integrantes do chamado “núcleo crucial” do golpe. O modismo político da vez é a grande lição que o Brasil está dando ao mundo, especialmente o de Donald Trump, de como se cuida da democracia.
Uma leitura de peças do inquérito que sustenta os autos do processo que passam à margem da ação penal, mostra, no entanto, que a denúncia tem um grande defeito de origem: em nenhuma das etapas, apesar das fartas evidências, se abordou o real papel dos militares na conspiração, embora muitos deles tenham lugar garantido no banco dos réus. O brigadeiro Batista Júnior, ex-comandante da FAB e o general Freire Gomes, ex-comandante do Exército, chegaram a ser chamados pelo ministro da Defesa, José Múcio de heróis, homens fortes que teriam impedido o golpe por maturidade democrática, respeito à Constituição e às regras do jogo. Trata-se, na verdade, de uma bajulação que um governo de esquerda jamais deveria ter permitido. A leitura do ministro é tosca e equivocada.
No Alto Comando do Exército, que tinha à época Freire Gomes na cabeceira da mesa e outros 16 generais quatro estrelas, o golpe foi discutido amplamente nos bastidores, como demonstraria o balanço do coronel Reinaldo Vieira de Abreu, então chefe de gabinete do general Mário Fernandes, o do plano Punhal Verde Amarelo, na Secretaria Geral da Presidência. “Cinco não querem, três querem muito e os outros na zona de conforto. Infelizmente. A lição que a gente deu para a esquerda é que o Alto Comando tem que acabar”. Mesmo que o placar tenha a sondagem da metade da cúpula do Exército, força sem a qual nenhuma quartelada prospera, o teor da mensagem é grave, como grave é se constatar que dos oito generais, três eram favoráveis a ruptura. Um deles era o então chefe do Comando Terrestre (Coter), Estevam Theophilo que, segundo Mauro Cid, aguardava apenas a assinatura de Bolsonaro no decreto golpista para colocar tropas na rua.
A realidade dos autos mostra que a hipótese mais plausível para explicar a não consumação do golpe foi a covardia de Bolsonaro e seu próprio perfil: a cúpula das Forças Armadas – e isso foi dito com todas as letras pelo advogado de Mauro Cid, Cesar Bitencourt – jamais participaria de uma quartelada comandada por um capitão que saiu do Exército pela porta dos fundos, num arranjo para não ser expulso e, assim, livrar os quartéis onde ele planejou atentados a bomba de novos desgastes. Se na linha de frente do plano estivesse, por exemplo, Braga Netto (algo se, segundo as suspeitas, poderia até ocorrer mais à frente se o golpe tivesse dado certo), o desfecho teria sido diferente. Portanto, não há heróis entre os militares.
O que houve foi falta de apetite da Polícia Federal, da Procuradoria Geral da República, do STF e, por extensão, do governo Lula 3 em responsabilizar todos os golpistas e, no mesmo embalo, aproveitar para encerrar o longo ciclo de tutela militar. Lula teve a chance __ mas faltou coragem política _ de depurar as Forças Armadas, livrando o país dos entulhos ideológicos remanescentes da ultra direita que deu o golpe em 1964 e ainda está por aí, seja em espírito ou materializada nas figuras do blogueiro Paulo Renato, neto do último ditador, general João Figueiredo, ou no general Estevam Theóphilo, sobrinho do coronel César Cals, golpista de primeira hora e ministro da ditadura.
No depoimento de Mauro Cid, corroborado por vários outros militares, entre os quais o próprio Freire Gomes, fica claríssimo que se discutiu em várias ocasiões o plano golpista até poucos dias antes do encerramento do mandato de Bolsonaro. O general e o brigadeiro Batista Júnior não aderiram, é verdade, mas aceitaram discutir um crime que esteve em andamento durante boa parte dos 69 dias entre o encerramento do segundo turno da eleição de 2022 e os ataques coordenados do oito de janeiro de 2023. Uma autoridade ciente de seu papel e legalista não teria sequer permitido as longas tratativas registradas na investigação. Diante do envolvimento de integrantes da tropa de elite do Exército, os chamados Kids Pretos _ detalhe que torna tudo muito mais escabroso _, que monitoraram autoridades e por muito pouco não executaram o plano de arrebatamento ou de assassinatos premeditados, a trama sórdida deveria ter sido abortada e Bolsonaro preso. Mas nada disso aconteceu.
Se não fosse a delação de Mauro Cid, que na verdade foi a única opção que lhe restou para livrar a família do processo, o país jamais teria tomado conhecimento dos detalhes cavernosos de uma trama que, com violência jamais planejada, promoveria a ruptura de uma democracia construída aos trancos e barrancos nos últimos 40 anos com os assassinatos do presidente eleito, de seu vice e do ministro relator dos processos contra os golpistas. Batista Júnior e Freire Gomes só abriram o jogo em depoimentos um ano depois a invasão dos poderes. É surpreendente que não tenham sido sequer indiciados por prevaricação.
Não foram os únicos poupados: a tentativa de golpe foi um plano escancarado, um segredo de polichinelo, com conhecimento pleno de muitos congressistas de direita e dos poderosos do agronegócio, que não só bancaram os acampamentos e as ações dos Kids Pretos, como sabiam o que estava acontecendo e pressionavam Bolsonaro a assinar o decreto do golpe. Até os adoradores de pneu acampados em frente ao GQ do Exército tinham conhecimento do plano, o que os levou a permanecer em Brasília mesmo depois da posse do novo presidente. Só não sabiam a PF, Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
Entre os militares que comandavam as Forças, todos eles cercados de aparatos de inteligência capacitados, o que não deixa margem para alegar desconhecimento, não há heróis. Eles sabiam que Bolsonaro tramava um golpe. O que há é uma casta que se acha superior porque ao longo dos últimos 40 anos não encontrou nenhuma autoridade civil com coragem para coloca-la a serviço do país e não de uma corporação que ainda mira o povo como “inimigo interno”. Heróis que evitaram o golpe? Só se foi para inglês ver.
- Plenário do STF, ainda vazio, à espera de um dos julgamentos mais importantes da história do país. Reprodução.