O apocalipe e o julgamento

1 de setembro de 2025, 01:31

SOMENTE AGORA PUDE VER “Apocalipse nos trópicos”, de Petra Costa. Assisti às vésperas do início do julgamento de Jair Bolsonaro e de parte do alto comando do golpe. A sensação é de estranhamento e, parcialmente, de alívio ao ter acesso a um compacto do circo de horrores do qual nos livramos há três anos.

O FILME NÃO É SOBRE A EXPANSÃO EVANGÉLICA, mas sobre a ausência e omissão social do Estado. A religião entra ali como decorrência e complemento da devastação neoliberal. Diante de um regime de acumulação concentrador de renda e que golpeia o mundo do trabalho, a fé emerge como bálsamo essencial. O próprio Lula define, a certa altura, que a Igreja leva conforto aos desesperados ao pregar “você está assim por causa do demônio e precisa achar Jesus”. A falta de serviços públicos, direitos, empregos de qualidade e o medo do futuro formam, de fato, o inferno para as maiorias. A perspectiva de conforto imediato em meio a um deserto de esperanças é o caminho natural para quem almeja escapar de uma sina secular de privações e falta de perspectivas.

MAS ALÉM DA QUESTÃO, quase abstrata, de um poder público tolhido pela mística – essa sim aberrante – de ajustes, cortes e sacrifícios orçamentários que um dia nos levarão à redenção do desenvolvimento, aparece a liderança inconteste da extrema-direita. Não é Bolsonaro, não foi Olavo de Carvalho, não são os generais das boquinhas e privilégios e nem os aventureiros do Congresso. O grande líder intelectual e estratégico do fascismo pátrio é Silas Malafaia.

DEIXEMOS DE LADO A POLÊMICA, a meu ver secundária aqui, se o autodenominado pastor é ou não representativo do fundamentalismo cristão e do universo evangélico brasileiro. Malafaia é uma aguda inteligência política, que articula racionalidade e dogma, buscando correspondências bíblicas a cada passo no terreno concreto da política. É ele quem dá a linha ao “Mito”, seus comparsas fardados e os donatários de mandatos variados. No choque de fundamentalismos – o divino e o mercadista – leva melhor quem mais fundo toca almas e anestesia desesperos.

O FILME É A MELHOR BIOGRAFIA política que o dirigente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo poderia ter. Malafaia é arrebatador e ousado. É quem diz na lata que o ex-presidente não deveria ter “ido à América” após a derrota e sim ficado aqui para “aguentar o tranco”. Chega ao ponto de mencionar Lula como contraponto, aquele que não fugiu, foi preso e encarou a ofensiva oposta. Malafaia é perigoso para a democracia, mas não estará no banco dos réus.

O JULGAMENTO SERÁ ÉPICO e, ao que tudo indica, despolitizado. A extrema-direita não está nas barras dos tribunais, mas apenas as pessoas físicas que operaram a sedição. A disputa política foi judicializada. É um avanço? Claro, e inédito no Brasil, que sempre anistiou golpistas e líderes do topo da pirâmide. No entanto, a película de Petra Costa mostra haver muito mais em cena, ou “mais camadas”, para usarmos a expressão da moda. “Enquanto a esquerda se resigna a propor reformas sociais modestas (…) a extrema-direita fala em um nível totalmente diferente. Ela encarna um tipo de fervor revolucionário, declarando a supremacia divina e a guerra santa”, afirma a cineasta a dada altura. Poderia emendar: enquanto o progressismo propõe contenção e o falso realismo neoliberal, o fascismo entra rasgando, investe na mobilização social e cativa militâncias. Não é à toa que a eleição presidencial foi tão equilibrada e que o extremismo do atraso passou o rodo nas disputas municipais de 2024.

BOLSONARO É CARTA fora do baralho para as classes dominantes daqui e de fora. Válvula queimada. Amargará cana exemplar. Mas o fascismo tropical seguirá, enquanto largas composições eleitorais sem programa forem apresentadas como salvação da lavoura, o que impede nosso hesitante progressismo de empreender uma guerra de valores, projetos e objetivos claros, a não ser o ajuste redentor. Se mantivermos apenas o embate de fundamentalismos, o místico e o neoliberal, fulanizaremos a luta, mas não abriremos nova fase histórica. E seguiremos girando em falso.

Cena de “Apocalipse nos Trópicos”, documentário brasileiro dirigido por Petra Costa sobre a influência do cristianismo evangélico na política de extrema-direita no Brasil. Divulgação.

Escrito por:

Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.

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