O que é o Centrão?

19 de setembro de 2025, 06:53

O Centrão se apresenta como o bloco político mais persistente da política nacional. Está em qualquer governo, da extrema-direita à esquerda acanhada, mas não consegue eleger Presidente da República. Envolve partidos de direita e flerta com a extrema-direita e gosta de se dizer de centro-direita.

Estamos diante de um enigma da esfinge. Afinal, é a marca do humano, como respondeu Édipo. Mas, no caso, é a imagem de um humano muito específico: o brasileiro.

Vamos por partes.

A primeira parte se apoia em entender como o Centrão se faz poder. Minha tese é que se trata de um bloco político que alia os herdeiros da ARENA, o partido da ditadura militar, com o que há de mais fisiológico e pragmático na política brasileira, o baixo-clero. Se há freios e contrapesos na política nacional, ela está no Centrão. O lado ARENA deste bloco avança nos sinais. Se aproxima do bolsonarismo, chantageia os governos de plantão, aceita o apadrinhamento do alto empresariado nacional, instrumentaliza a ordem democrática. Mas, logo aparece o seu grilo falante, o baixo-clero. O baixo-clero é pragmático e desdenha estratégias gerais ou propostas nacionais. Seu campo de atuação é o local, o território municipal. Ali está seu séquito de apoiadores liderados pelo prefeito de plantão. Prefeito é cabo eleitoral do baixo-clero.

Aqui, vamos para a segunda parte. Se o lado ARENA do Centrão é mais coeso e nacionalizado, o seu lado baixo-clero é disperso e pouco ideologizado. Ele se amolda ao relevo social e político do território nacional. Como era o PMDB (voltarei a esta analogia logo mais). E se espraia pelo sistema partidário. Darei um exemplo: o PT tem seu baixo-clero, embora o que apareça para o mundo externo é a história aguerrida do que um dia era a expressão das lutas por direitos coletivos em nosso país. PT era a expressão das demandas dos de baixo. Era. Um dos exemplos de baixo-clero petista é Odair Cunha, um dos doze deputados federais que votou pela PEC da Blindagem.

Odair Cunha vem da Renovação Carismática, a ala meio Centrão da igreja católica brasileira. Inspirada na crença pentecostal, como parte dos evangélicos. Odair foi secretário de governo de Fernando Pimentel, quando governador de Minas Gerais. Antes, como deputado federal, chegou a comandar e alimentar 150 prefeituras mineiras. Atendia todas as prefeituras governadas pelo PT no sul de Minas Gerais e mais algumas governadas pelo PSDB e PMDB. Era um dos príncipes da fase de ouro do segundo governo Lula, quando os chineses começaram a importar minério de ferro e resolveram fazer investimentos diretos na terra do pão de queijo.

O governo Lula tinha montado toda estrutura rooseveltiana, do Bolsa Família ao PAC, chegando ao Minha Casa, Minha Vida e distribuição de patrulhas mecanizadas e estações de tratamento de esgoto. Os prefeitos procuravam deputados federais que os encaminhassem e defendessem seus pleitos junto aos ministérios e outras agências estatais em busca de convênios. Os deputados federais se tornaram a face mais atuante no cotidiano da nossa república. E Odair era um dos príncipes desta lógica cartorial que tomou parte do PT.

Odair é pragmático. Sua ascensão tem relação direta com a queda do então maior representante da igreja católica no PT mineiro: Patrus Ananias. Sua trajetória política, de certa maneira, indica a mudança interna que o PT sofreu a partir de 2007. O PT se tornou mais pragmático e mais vinculado às prefeituras que passou a atender. E nasceu a vertente baixo-clero petista. Aliás, daí também nasceu outra ala, a que encosta no bolsonarismo, liderada pelo petista fluminense, o Quaquá.

Chegamos, então, na última parte desta análise: a cultura popular que é atraída pelo Centrão. Afinal, qual seria o motivo para o Centrão eleger tantos deputados, mas não conseguir firmar um líder nacional e elegê-lo Presidente da República. A resposta está na lógica peemedebista (roubando o conceito de Marcos Nobre).

O PMDB viveu exatamente este dilema em sua longa vida política. No auge da sua liderança, logo após a promulgação da Constituição de 1988, Ulysses Guimarães se lançou à Presidência da República. Em 1989, como candidato a presidente, recebeu minguados 4,74% dos votos, ganhando em 98 municípios no país (tendo Lajedão-BA como o seu município mais votado com 65,52% dos votos). Em 1990, foi reeleito deputado. O PMDB era o partido mais forte do espectro partidário brasileiro.
Em 1994, o PMDB lançava outro candidato à Presidência da República. Outro paulista: Orestes Quércia, o governador das rodovias e estradas vicinais. Foi o quarto colocado naquela eleição, com apenas 4,38% dos votos, atrás de Enéas Carneiro (Prona).

O que acontecia com o PMDB? Ele tinha parlamentares e prefeitos às pencas. Tinha alas mais progressistas, como no Paraná ou Minas Gerais, mas tinha uma ala conservadora em São Paulo e em Minas Gerais. Enfim, era um partido que se amoldava às peculiaridades regionais e locais. Assim, se tornava popular. Mas, internamente, havia um equilíbrio tenso entre as inúmeras diferenças que carregava. Daí vinha sua dificuldade para impor um Presidente porque significaria que algum cacique local deveria ser aceito como futuro rei do partido.

Um partido-mosaico como o PMDB não dava lugar a um rei. Todos os caciques eram príncipes e deveriam ficar assim. Desse modo, o PMDB sempre rachava no apoio a um candidato mais à direita e outro, mais à esquerda, e cristianizava o candidato a presidente de seu próprio partido. Era a forma de manter o equilíbrio interno neste partido. O equilíbrio entre caciques regionais.

Este é o dilema do Centrão. Se avança com seus caciques herdeiros da ARENA, se prende no pragmatismo do seu baixo-clero. O pragmatismo aponta para acordos com os governos de plantão para abastecer suas bases territoriais. A ala ARENA se aproxima dos blocos mais à direita e gosta das ameaças e traições para abalar os governos progressistas.

Assim, a cultura popular que o Centrão atrai é a pragmática, destituída de ideologias e marcadas pela vida frustrada. É aquela base social descrita por Sérgio Buarque de Holanda que precisa tocar no líder local e regional. É esta base que coloca um bilhetinho no bolso do paletó do deputado da região, pedindo um emprego para um parente, cimento para uma construção doméstica ou algum favor pequeno, plausível, porque este cidadão não confia em grandes projetos ou mudança real de sua vida. Afinal, seus pais, avós e ancestrais viveram uma vida muito parecida com a sua. Ele continua parte dos “de baixo”. As poucas chances que têm vem desta troca de favores que aumenta suas chances em períodos eleitorais.

É verdade que nem todos pensam assim. Há momentos que percebem que há algum movimento ou líder político que realmente tenta quebrar as barreiras que fazem da estrutura social brasileira algo que se parece com castas. Mas, mesmo quando creem, ainda há um forte traço de pragmatismo. As beneficiárias do Bolsa Família descreveram nitidamente esta cultura quando suas falas foram registradas no livro “Vozes do Bolsa Família”, apontamentos da pesquisa realizada por Walquiria Domingues Leão Rego e Alessandro Pinzani.

Elas diziam que Lula era igual a qualquer outro político, com uma diferença: na infância, sentiu a dor da fome. O passado de Lula criava um fio de esperança de que seria diferente. Mas, não tanto. As frustrações da vida levavam aquelas mulheres a desconfiarem das elites políticas porque sabia que eram marcadas por interesses negociados entre eles. Eles se mantinham no poder através desses acordos feitos longe dos olhos dos cidadãos. Já tinham visto muitos casos assim, envolvendo lideranças e partidos diferentes ao longo de anos. Muitos casos contados por seus pais e avós que revelavam “mais do mesmo”.

O Centrão, neste caso, é a força política que se aproxima mais do desencanto popular com a política brasileira. Vez ou outra, este desencanto transforma a frustração e ressentimento em raiva e aí surgem movimentos políticos mais agudos e raivosos. Mas, em condições de pressão e temperatura normais, é o estilo Centrão que possibilita pequenas vitórias e benefícios.

É este jogo de favores que gera o lastro na política nacional. Uma âncora que faz tudo mudar para que tudo fique como está. Para os “de baixo”, mas também para o Centrão, que assim como o PMDB, sempre está no poder, mas não consegue eleger Presidente da República.

  • Imagem gerada em IA

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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