O salto de Boulos

29 de setembro de 2025, 19:15

Numa manhã de 2018, conversava com Guilherme Boulos num café da Avenida Paulista. Perguntei a ele se desejava ser o Lula do futuro. Boulos sorriu e disse que achava o perfil popular de Lula muito importante para a esquerda, mas queria ser mais à esquerda que ele. Uma esquerda mais popular ou um líder popular mais à esquerda.

Lembro bem desta conversa porque pouco depois ele viu no celular uma notícia e ligou para Lula, se solidarizando. A notícia era de que o TRF-4 (Tribunal Regional da 4ª Região) havia ampliado a punição a Lula para 12 anos e um mês, em regime fechado.

A resposta ficou na minha memória, mas também a forte relação de Boulos com Lula.

Nos últimos dias, Guilherme Boulos voltou à tona com o anúncio de que assumiria o ministério de Lula, poucas semanas depois do deputado federal ter lançado o livro “Para onde vai a esquerda?”.

Livro de Guilerme Boulos. A ex-presidente Dilma Rousseff foi uma das que fez questão de escrever apresentando o livro e o autor: “Mais que um diagnóstico, este livro é um chacoalhão necessário: Boulos convoca a esquerda a sair da defensiva, repensar estratégias e reconectar redes e ruas antes que seja tarde demais. É um chamado à ação!”.

Quando soube do livro, fiquei pensando o que o teria motivado a lançar este livro, dado que a sua última campanha para a prefeitura de São Paulo foi um imenso retrocesso na escalada política de Guilherme. Um livro não redimiria a campanha. Mas, o enquadraria com mais precisão na tarefa que assumiria num ministério de Lula.

Este artigo objetiva explorar esta relação de Boulos com Lula. Começarei, contudo, por analisar seu livro. Se minha hipótese está certa, este livro é uma espécie de “Carta ao Povo de Esquerda” de Boulos. Expõe quem será Boulos como ministro.

Seu livro começa afirmando “a consolidação da extrema-direita é o acontecimento histórico mais relevante do último período” e sugere que é o momento de a esquerda enfrentar com decisão e estratégia esta ameaça à humanidade.

Em seguida, entabula as causas que deram a oportunidade para a extrema-direita emergir: a fragmentação das relações de trabalho (que quebrou as identidades históricas dos trabalhadores), a popularização rápida das redes sociais (que alimentou a polarização ideológica), a reação conservadora às mudanças sociais (que colocaram em xeque a família tradicional) e a sensação permanente de insegurança.

Ao enveredar sobre a análise da atual fase do capitalismo, fiquei atento para saber como é seu posicionamento: se de confronto ou de acomodação (neste caso, ao estilo lulista).

Boulos sugere que as maiores expressões do capitalismo contemporâneo são os bancos, fundos de investimentos, grandes corporações e big techs. Sustenta que são setores econômicos aliados da extrema-direita.

Sugere que esta aliança econômica-política realiza o que Freud – Boulos é psicólogo – denominou de “mecanismo de deslocamento”, ou seja, deslocaram a revolta contra os bilionários e poder econômico para o campo político. Capitalistas passam a defender o empreendedorismo do qual são exemplo de sucesso e atacam as elites políticas, a cultura woke, os sindicatos, globalistas e comunistas que seriam, na verdade, o sistema. Está dado o discurso antissistêmico pelos donos do sistema.

Por aí, entendi que Boulos se distancia do modelo lulismo.

E então, Boulos sugere que o governo Lula vive um cerco em três frentes. E destaca que eleitores de centro, “órfãos do PSDB” e lideranças do Centrão, os “liberais sociais” que representam 3% da sociedade, apoiaram momentaneamente a eleição de Lula em 2022, mas não apoiam necessariamente seu governo. Os três cercos que apresenta são: o cerco da Faria Lima (objetivando o ajuste fiscal e corte de investimentos), o cerco do Centrão (objetivando o sequestro do orçamento) e o cerco do bolsonarismo (estimulando a “guerra cultural”). Boulos compreende que a chantagem é a lógica da relação dos agentes financeiros com todos os governos. O que os vincula ao Centrão nitidamente.

A “ponte” entre o enfrentamento direto ao capital e a mediação lulista baseada em acordos permanentes – e instáveis – com esses agentes econômicos é a preocupação de Boulos em entender o que mudou na cabeça dos trabalhadores deste século. Cita a experiência que teve durante a eleição à prefeitura de São Paulo no ano passado. Conta o resultado de uma pesquisa qualitativa com camelôs, pedreiros, manicures e motoristas de aplicativo que consideravam que ele era o candidato que mais defendia quem necessitava de ajuda, mas não se consideravam nesta situação. Eram, afinal, empreendedores.

A tal “guerra cultural”, é o grande problema para Boulos. Sua preocupação é como saber enfrentar esta guerra que altera a identidade dos trabalhadores e os distancia do projeto de esquerda.
Os componentes desta guerra são: o algoritmo manipulado pela big techs e o que ele denomina de ecossistemas de guerra.

Vale a pena compreender como compreende esses dois componentes.

Para Boulos, a manipulação dos algoritmos diminuiu a força da grande imprensa. Justamente porque todos podem publicar suas opiniões nas redes sociais, dificultando a compreensão que as big techs impõem filtros. Assim, os filtros acabam por criar uma onda de opinião que forma uma identidade comum, quase sempre focalizando um inimigo comum, canalizando a indignação, o ressentimento e a revolta. Esta lógica alimenta os mais carentes por reconhecimento que se atiram no discurso de ódio.

Já os ecossistemas de ódio são plataformas que articulam vídeos, noticiário, lives, como é o caso do Brasil Paralelo. Forjam uma comunidade. Há diversos estímulos que alimentam essas comunidades, como a criada por Marçal, que pagava por cortes que lhe interessavam e que eram postados nas redes sociais. O volume de visualizações gerava um pagamento, alimentando uma pirâmide de engajamentos. Boulos afirma que sua campanha eleitoral não estava preparada para enfrentar esta máquina.

O livro termina com uma espécie de tentativa de descoberta das saídas para a esquerda.

Confesso que senti algo entre constatação e motivação à reação. Nada muito elaborado. Mesmo assim, por aí entenderia melhor o quão distante estaria do lulismo.

A primeira sugestão que apresenta é a retomada do senso de comunidade dado que a sobrevivência passou a ser compreendida como questão individual.

Em seguida, Boulos critica duas soluções que lhe parecem equivocadas como saídas. Uma é a que propõe que a esquerda ceda, deixando de lado suas bandeiras históricas para ceder numa aliança de enfrentamento do fascismo.

O segundo erro é o sectarismo, que sugere que a esquerda deve radicalizar, sem concessão alguma. Para Boulos, esta posição retoma a tradição humanista que atribui uma poder mágico às palavras, sem que consiga efetivamente mobilizar as massas. Novamente, seu interesse em dialogar com as novas identidades e percepções das classes populares. Boulos critica o distanciamento da vida real do povo.
Por aí, mergulha no que entende ser a pauta popular do momento: segurança pública, o empreendedorismo, a defesa da forte atuação social do Estado, além dos perigos (a catástrofe climática e o uso da inteligência artificial) para retomada a ofensiva da esquerda.

Há um lampejo de novidade quando cita Mujica que dizia que os governos progressistas latinoamericanos melhoraram a vida das pessoas, mas não formaram cidadãos.

Chega a criar um esboço de palavra de ordem: “mão no celular, pé no barro”.

De um lado, a necessidade de uma unidade narrativa nas redes sociais, a disputa pelo manejo dos algoritmos e a formação do ecossistema próprio para a guerra cultural.

De outro, sustenta a necessidade da retomada do trabalho de base com pé no barro. Recorda da experiência das CEBs. Sugere que o pé no barro leva a esquerda a perceber a importância do acolhimento que as igrejas evangélicas operam. E que o caminho para se aproximar dessas igrejas é a defesa de políticas sociais e do discurso comprometido com os trabalhadores, com a precariedade vividas pelos moradores de periferia e os negros. Cita a agenda cultural das periferias, dos slam e batalhas de rima. Cita os cursinhos populares e as cozinhas solidárias. Articula, assim, iniciativas que falam das ações para superação das mazelas das periferias com uma leitura da importância das igrejas evangélicas. E conclui que “por mais forte e sedutora que seja qualquer ideologia, o pão, em algum momento, fala mais alto”.

E fica por aí.

O livro de Boulos revela os limites das lideranças de esquerda brasileira na atualidade. Apresenta um bom diagnóstico que, inclusive, envolve explicações da psicanálise, algo raríssimo no debate político-partidário das nossas esquerda. Porém, quando procura apresentar uma saída, patina. Em muitas passagens, compara o sucesso da extrema-direita – nas redes sociais e no “mecanismo de deslocamento”, mas não cria uma proposta geral, o tal discurso hegemônico que Gramsci citava. Seria como dizer que vemos, mas não enxergamos.

Boulos revela mais. Revela uma busca, ainda em construção, entre o lulismo e uma proposta de esquerda popular. Aquela conversa que tivemos tomando um café continua viva e não resolvida. Boulos deseja ser popular como Lula, o que significa ouvir e entender a cultura e demandas populares com atenção. Mas, quer estar mais à esquerda que Lula e é aí que não consegue achar um caminho, justamente porque não há referências históricas no Brasil. Tivemos líderes populares, mais vanguardistas ou mais populistas, mas não exatamente o que busca Boulos.

Talvez, por aí, entendamos os erros que cometeu na sua campanha para a prefeitura de São Paulo. Entre inovar no discurso e não ser vanguardista, acabou caindo no adesivo do “cachorro caramelo” que dizia que apoiava sua campanha. Ora, Boulos conhece a periferia paulistana e sabe que o cachorro caramelo está mais para a piedade da classe média da região oeste da cidade que para o Itaquerão ou Capão Redondo. Imagino que tenha percebido, já que as urnas abertas no segundo turno das eleições do ano passado revelaram justamente isso: ganhou na região oeste e perdeu os extremos sul e leste da cidade.
Boulos, contudo, arriscou. É raro, em tempos lulistas, ver um líder popular arriscar. Ele deu a cara. E assumiu os desafios da esquerda.

O livro poderá não ajudar tanto ao assumir o ministério de Lula. Mas, nos ajuda a entender a psique de Boulos.

  • Imagem gerada em IA.

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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