Os efeitos da solidão e do isolamento social ao longo da vida
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a solidão – o sentimento causado pela falta de conexões e interações sociais – como epidemia global em 2025. O impacto da solidão e do isolamento social na nossa saúde pode ser maior do que imaginávamos: aumento do risco de problemas cardíacos, de acidente vascular cerebral (AVC) e de problemas de saúde mental (depressão, ansiedade e até demência) são algumas das consequências. Nesse contexto, a tecnologia é geralmente vista como inimiga da situação. Mas novas pesquisas mostram que ela pode ser aliada – dependendo da maneira como for utilizada.
A solidão pode reverberar de maneira bastante negativa em nossa saúde: doenças cardiovasculares, abuso de substâncias e problemas de saúde mental estão entre as sequelas desse sentimento cada vez mais presente no cotidiano das pessoas – e em todos os estágios da vida. Em 2023, o Departamento de Saúde Pública dos Estados Unidos (EUA) estimou que o impacto da solidão na saúde é equivalente ao de fumar 15 cigarros por dia e que cerca de 50% da população estadunidense se sente solitária. De acordo com o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado em junho de 2025, uma em cada seis pessoas no mundo é afetada pela solidão, condição que está associada a mais de 870 mil mortes por ano, sendo os jovens e adultos de baixa e média renda os mais afetados.
A solidão pode nos impactar de maneiras diferentes em cada fase da vida. Um estudo realizado por pesquisadores do Hospital Infantil de Boston (EUA) constatou que adolescentes que optam com frequência pelo isolamento social podem sofrer alterações significativas na função e na estrutura do cérebro. A conclusão veio a partir de imagens cerebrais (como ressonância magnética) e dados comportamentais de três mil adolescentes participantes do estudo “Adolescent Brain Cognitive Development” (ABCD), ou “Desenvolvimento Cognitivo do Cérebro Adolescente”,em tradução livre. O artigo “Neural Correlates of Social Withdrawal and Preference for Solitude in Adolescence” (“Correlações neurais do retraimento social e da preferência pela solidão na adolescência”) foi publicado na Revista Cerebral Cortex em outubro de 2025.
A pesquisadora Dra. Caterina Stamoulis, autora principal do artigo, explicou que o projeto ABCD, realizado com 11.800 jovens em 21 locais dos EUA, é “o único que utiliza neuroimagem profunda para medir a atividade cerebral estrutural e funcional dos participantes”, além de analisar o ambiente e medir o comportamento social e a saúde mental desses jovens. Ou seja: ele avalia a parte física e a psicológica do cérebro dos participantes. Com esses dados, Stamoulis e sua equipe puderam observar que os adolescentes socialmente retraídos apresentaram diferenças na estrutura do cérebro em regiões que realizam o processamento social e emocional, incluindo o lobo insular e o córtex cingulado anterior. As redes cerebrais também apresentaram conexões mais fracas, além de ter sido observada uma fragilidade maior nos circuitos que influenciam os comportamentos sociais e as tomadas de decisões.
Stamoulis admite que essas descobertas não foram tão “inesperadas”; o elemento surpresa foi descobrir que essas diferenças não se limitaram apenas às áreas do cérebro que sustentam a função social: elas se espalharam por múltiplas redes da função cognitiva, em diferentes domínios. “Sua associação com outros circuitos cerebrais disseminados sugere que o isolamento social pode aumentar o risco de problemas de saúde mental”, alerta a pesquisadora.
O estudo ressalta que um pouco de solidão nessa fase da vida é normal e até mesmo essencial para o desenvolvimento do ser humano. Porém, padrões de abstinência social permanente demandam uma atenção especial por parte dos responsáveis. Stamoulis acredita que “educar as famílias, mostrando-lhes o que está acontecendo no cérebro dos filhos” é uma atitude importante nesse processo. Ao reconhecer esse comportamento logo cedo, as estratégias para proteger a saúde mental dos adolescentes podem ser aplicadas de modo mais eficiente, evitando problemas mais graves no futuro. O desenvolvimento das habilidades sociais, logo no começo da vida, pode prevenir doenças e também contribuir para o tratamento de alguns transtornos mentais graves conhecidos, como a esquizofrenia.
Habilidades sociais podem ajudar no tratamento da esquizofrenia em estágios iniciais
Se o isolamento social na adolescência pode aumentar o risco de transtornos mentais na vida adulta, o desenvolvimento das habilidades sociais pode servir de auxílio no tratamento de alguns deles. Segundo dados do Instituto de Saúde Mental dos EUA, a maioria desses problemas começa na adolescência, quando o cérebro ainda está em desenvolvimento e pode ser facilmente danificado. Algumas consequências desses transtornos mentais incluem dificuldades na escola, nos relacionamentos com colegas e no controle das emoções e das ações – que podem permanecer na vida adulta.
Pesquisadores da Escola de Ciências Sociais Aplicadas Jack, Joseph e Morton Mandel, pertencente à Universidade Case Western Reserve (Ohio, EUA), identificaram como as habilidades de inferência social (a capacidade de “ler nas entrelinhas” em situações sociais) dos adolescentes podem auxiliar no tratamento da esquizofrenia. Os profissionais ensinaram 102 pacientes a entender melhor os sinais sociais por meio de programas de treinamento direcionados, que consistiam em jogos estruturados de computador e planilhas. Os resultados foram publicados na Revista Psychiatry Research, em setembro de 2025, no artigo “Social cognition as a mediator between neurocognition and functional outcome in early course schizophrenia” (“A cognição social como mediadora entre a neurocognição e o resultado funcional no início da esquizofrenia”).
A análise revelou que a cognição social (capacidade do cérebro de entender e atuar em interações sociais) serve como uma ponte entre as habilidades básicas de pensamento e o funcionamento cotidiano durante os estágios iniciais críticos da esquizofrenia. Os autores do estudo sugerem, inclusive, o uso dos programas de treinamento em inferência social utilizados na pesquisa como parte do tratamento para jovens com esquizofrenia em estágio inicial, pois as abordagens tradicionais (que se concentram unicamente em habilidades de memória e atenção) podem não ser as mais eficazes nesse cenário. “Abordar tanto as habilidades de pensamento [memória, atenção, etc.] quanto a compreensão social oferece a melhor esperança de recuperação funcional na esquizofrenia em estágio inicial”, defende Anju Kotwani, doutoranda na Escola Mandel e uma das pesquisadoras da equipe.
Outros dois estudos, um realizado por cientistas da Universidade Flinders, na Austrália, e o outro pela Universidade Estadual do Michigan (EUA), defendem a sugestão de utilizar recursos tecnológicos como parte do tratamento de problemas de saúde mental, pois eles podem servir para além dos casos envolvendo esquizofrenia: os jogos virtuais podem ajudar a tratar a própria reclusão social dos adolescentes.
A realidade virtual como aliada no processo de socialização
Parece senso comum a ideia de que, cada vez mais, as tecnologias nos afastam das interações sociais reais. Nas próprias redes sociais, há um movimento crescente de incentivo às chamadas “interações reais”, com foco em “mais vida fora das telas”. No entanto, especialistas em educação da Universidade Flinders alegam que esse recurso pode ser justamente a solução para jovens com dificuldades de socialização, especialmente quando incluem técnicas de realidade virtual (RV). Segundo esse grupo de pesquisadores, os transtornos da comunicação social – que incluem dificuldades persistentes na comunicação verbal e não verbal – impactam de forma significativa as interações sociais de crianças e adolescentes.
Os tratamentos baseados em intervenções tradicionais vêm apresentando algumas limitações práticas, como dificuldades em replicar contextos sociais do mundo real e o baixo envolvimento por parte de alguns jovens. Em contrapartida, a realidade virtual parece oferecer ambientes controlados, que permitem uma prática social mais segura e estruturada que se dá de forma mais “natural”. De acordo com as pesquisas realizadas até o momento, o professor Dr. Weifeng Han, um dos autores principais do estudo, afirma que “interfaces inovadoras e acessíveis, como os óculos de RV, podem ser uma forma segura, motivadora e envolvente para os jovens praticarem habilidades sociais antes de aplicá-las no dia a dia”, servindo como “uma ferramenta mediadora entre intervenções terapêuticas e interações sociais no mundo real”, explica.
Para obter essa resposta, a equipe revisou 11 estudos sobre ferramentas de RV para o Transtorno do Espectro Autista (TEA), realizados entre 2010 e 2024. As descobertas foram descritas no artigo “Virtual Reality as a Mediating Tool in Addressing Social Communication Disorder: Current Understanding and Implementation Strategies” (“Realidade virtual como ferramenta de mediação no tratamento do transtorno da comunicação social: compreensão atual e estratégias de implementação”), publicado na revista Languages em setembro de 2025.
O outro estudo, conduzido pela Universidade Estadual do Michigan, corrobora com esses resultados ao demonstrar que jogos de esportes em realidade aumentada/realidade virtual (RA/RV) podem promover o bem-estar psicológico dos jogadores, pois os ajudam a se sentirem conectados com outras pessoas e a se engajarem na comunicação em tempo real. Esses efeitos foram ainda mais fortes para aqueles que se sentiam solitários.
Os dados foram obtidos a partir de uma pesquisa com 345 indivíduos que jogavam diversos jogos esportivos de RA/RV, como tênis de mesa, boliche e bilhar. Os participantes recrutados responderam voluntariamente a um questionário para avaliar seu envolvimento com os jogos, seu bem-estar psicológico, solidão e outros fatores. Conclusão: aqueles que se envolviam mais com jogos, apresentavam níveis mais elevados de bem-estar psicológico.
Os pesquisadores observaram que jogos de esportes em RA/RV podem criar uma forte sensação de estar com outras pessoas por meio do uso de avatares, comunicação em tempo real e sinais não verbais. “Quando as pessoas se sentem presentes com outras por meio de avatares ou interação virtual, a experiência se torna mais do que apenas um jogo; esse é o poder da presença social”, explicou Sanghoon Kim, professor da universidade e um dos autores do estudo. Os autores acreditam que essa descoberta pode oferecer informações valiosas para o debate sobre as vantagens e desvantagens do envolvimento com jogos, ao trazer novas perspectivas dos jogos em RA/RV. O artigo “Exploring the Social Dimensions of Virtual/Augmented Reality Sport Gaming: Interplay Among Game Involvement, Interpersonal Relationships, Social Capital, and Psychological Well-Being” (“Explorando as dimensões sociais dos jogos esportivos em realidade virtual/aumentada: interação entre envolvimento com o jogo, relações interpessoais, capital social e bem-estar psicológico”) foi publicado no periódico International Journal of Human-Computer Interaction em maio de 2025.
Mas os pesquisadores alertam que os jogos de esportes em RA/RV não são uma solução universal para a solidão. Apesar de contribuir para alguns tratamentos, as tecnologias em geral possuem limitações e dependem muito da forma como são usadas para que os resultados sejam positivos. Caso contrário, aquele senso comum de que o mundo virtual piora o sentimento de solidão pode se mostrar verdadeiro. Isso é o que afirma outro estudo, conduzido pela Universidade Estadual do Oregon, também nos Estados Unidos, que analisou a solidão com o uso das redes sociais.
As redes sociais e a solidão na vida adulta
Estimativas sugerem que não é incomum uma pessoa acessar as redes sociais entre 100 e 200 vezes por dia e passar de duas a quatro horas em suas plataformas preferidas. Alguns indivíduos podem pensar que as “checadas rápidas” não são tão prejudiciais quanto as sessões mais prolongadas, mas os pesquisadores da Universidade Estadual do Oregon descobriram que ambas podem ser associadas ao sentimento de solidão da mesma forma: de fato, há uma associação significativa entre a solidão e o uso frequente ou prolongado das mídias sociais.
Outra constatação da pesquisa, que contou com mais de 1500 adultos estadunidenses entre 30 e 70 anos de idade e foi publicado no periódico International Journal of Environmental Research and Public Health em outubro de 2025, é a de que a relação entre o uso de redes sociais e a solidão é tão forte em pessoas de 60 anos quanto em jovens de 18 anos. “Aqueles que estavam nos 25% com maior frequência de uso de redes sociais, em comparação com aqueles nos 25% com menor frequência, tinham mais que o dobro da probabilidade de apresentarem níveis de solidão nos testes”, revelou Brian Primack, coautor do estudo e também autor de outra pesquisa, realizada em 2017, que analisou a associação entre redes sociais e a solidão apenas em adultos jovens.
Segundo a análise atual, intitulada “Time and Frequency of Social Media Use and Loneliness Among U. S. Adults” (“Tempo e frequência de uso das redes sociais e solidão entre adultos nos EUA”), “os idosos, como ‘imigrantes digitais’, podem ser menos habilidosos do que os usuários mais jovens de redes sociais, o que poderia ser um fator por trás da relação com a solidão na população idosa”.
No entanto, Primack revela que não foi possível determinar por que essa conexão entre redes sociais e solidão acontece, e nem se o uso das redes leva à solidão ou se pessoas solitárias buscam mais as redes sociais; apenas foi possível afirmar que há uma correlação entre esses dois fatores. “Pode ser uma combinação de ambos”, Primack sugere. De qualquer forma, a recomendação dos especialistas é de cautela em relação ao uso excessivo de redes sociais – tanto para os mais jovens quanto para os mais velhos.
A importância da inclusão e das atividades sociais para a população idosa
A chamada “terceira idade” costuma ser a fase mais solitária da vida. Tanto que, quando um grupo de pesquisadores da Universidade Case Western Reserve, em Cleveland (EUA), perguntou “qual a coisa que mais importa para você?” para idosos que estavam em salas de espera de clínicas de atendimento ambulatorial, quase metade das respostas envolveram temas associados a atividades sociais e de inclusão. Isso contrariou a expectativa dos pesquisadores, que esperavam ouvir “saúde” em primeiro lugar – considerando, principalmente, que os idosos ouvidos aguardavam atendimento em clínicas médicas.
O estudo, publicado na revista JAMA Network Open em outubro de 2025, sob o título “Patient-Centered Priorities for Older Adults in Ambulatory Care” (“Prioridades centradas no paciente para idosos em atendimento ambulatorial”), ouviu cerca de 388 mil pacientes com 65 anos ou mais, que receberam atendimento clínico presencial entre janeiro de 2021 e março de 2024, em mais de 900 clínicas espalhadas por 35 estados dos EUA. Em segundo lugar nas respostas, vem a “saúde” (21%), seguida da “independência” (17%) e da “união familiar” (10,5%). Quase dois terços dos entrevistados eram mulheres e três quartos eram brancos – mas, segundo os pesquisadores, as respostas não apresentaram variação por sexo, raça ou etnia.
Nicholas Schlitz, professor da universidade e coautor da pesquisa, disse ter se surpreendido com os resultados. “Eu teria imaginado que a saúde seria um pouco melhor, já que este é um ambiente de cuidados intensivos”, argumentou. “Mas acho que isso apenas mostra que os idosos – como todos os outros – são muito complexos e têm outras necessidades que são igualmente prioritárias”, concluiu o pesquisador.
Independente da fase da vida, conexões e interações sociais permanecem sendo alicerces da saúde humana. Conversar, conviver, visitar parentes e amigos, participar de atividades e eventos sociais – dentro ou fora de casa – são ações que precisam ser cultivadas e estimuladas em todos os estágios da vida. Quando há problemas ou condições que impedem a comunicação com outras pessoas, é importante buscar ajuda profissional, pois as consequências do isolamento social prolongado chegam silenciosamente, aos poucos, sem avisar – e podem ser devastadoras tanto para a mente quanto para o corpo.
Um pouco de solidão, por outro lado, faz bem: é fundamental que saibamos conviver em paz com a nossa própria companhia, sem depender de outras pessoas para encontrar (e manter) a felicidade. É na solidão que conseguimos nos descobrir ou nos reconectar com quem somos e desenvolver nossa autenticidade enquanto indivíduos. Encontrar o equilíbrio entre ser feliz sozinho e ser feliz com os outros não é fácil. Mas é necessário. Em cada fase da vida.