
Ossos Silenciados

Em março desse ano, o Governo Lula e a Universidade de Brasília (UnB) – onde me formei, em 1987, na transição entre o último reitor nomeado pela ditadura militar, o comandante de Mar e Guerra José Carlos de Almeida Azevedo – que o diabo o tenha espetado em um tridente afiado – , e o nascedouro democrata, com a eleição, pelo voto direto, do professor Cristovam Buarque, lançaram o “Observatório de Desaparecimento de Pessoas no Brasil”, mostrando que, só em 2024, mais de 66 mil pessoas sumiram, na maioria crianças e adolescentes – o que é uma loucura, mas com causas as mais diversas. Conflitos familiares, uso de drogas ou álcool, maus tratos, abuso sexual e trabalho escravo estão entre as principais causas de desaparecimento – ou fuga – desses brasileiros e brasileiras. Mas há também, claro, o tráfico infantil. No mundo, 8 milhões de crianças desaparecem por ano, 800 mil só nos Estados Unidos.
Há 60 anos atrás, com o Brasil enterrando o pé na lama de mais de duas décadas da ditadura militar imposta em 1964, com a chancela do governo norte-americano, as pessoas desapareciam, em grande número, por outras razões. Segundo os dados oficiais mais recentes, 434 pessoas foram vitimas pelo Estado brasileiro no contexto de repressão política, conforme o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, em se terceiro colume – com o ápice após o Ato Institucional nº 5, de 1969 a 1978, quando 351 pessoas morreram ou desapareceram – o que, a essa altura, é a mesma coisa. Um terço eram estudantes.
O número não leva em conta os sobreviventes, com todas as sequelas inomináveis desse trauma, como a ex-presidente Dilma Rouseff. Dilma fazia parte de organizações clandestinas de esquerda, como o Colina e a VAR-Palmares, que se opunham à ditadura. Ela foi levada para instalações como a Operação Bandeirante (Oban) e o DOPS, onde foi submetida a intensas sessões de tortura por 22 dias. Os métodos incluíam choques elétricos, pau de arara, palmatória e socos. Durante sua presidência (2011–2016), Dilma sancionou a lei que criou a Comissão Nacional da Verdade.

Todos os anos, os cartórios brasileiros corrigem as causas das mortes e emitem novas certidões de óbitos de mortos e desaparecidos na ditadura. Caso de Ari Lopes de Macedo, estudante morto em Brasília aos 20 anos após ter sido detido pelo 26º Batalhão de Caçadores de Belém (PA), em 1963. A versão oficial apresentada foi a de suicídio. Do alfaiate mineiro Geraldo da Rocha Gualberto, que morreu em 7 de outubro de 1963 no “Massacre de Ipatinga”, operação policial contra uma multidão de trabalhadores grevistas, que manifestavam contra as condições de trabalho impostas por uma siderúrgica. Em Recife (PE), o padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, coordenador da Pastoral da Juventude, desenvolvia atividades de inclusão social e recuperação de jovens, foi sequestrado, em 1969, torturado e morto por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas e por agentes da polícia civil de Pernambuco.
Mas existem 232 desaparecidos – o número varia ano a ano, conforme novas descobertas – e nunca encontrados, durante o regime militar, reconhecidos pela Comissão da Verdade, cujas famíias têm até, legalmente, o direito de um atestado de óbito – grande coisa! -, como vítimas da violência cometida pelo Estado. Mas são, como traduzem seus entes queridos, os “ossos silenciados”, uma arqueologia das violações do passado. Ossadas e restos mortais de desaparecidos políticos, indígenas, camponeses que permanecem sem identificação – um tema hoje, lamentavelmente, à margem do debate público. Corpos apagados, mostrando como violência e impunidade seguem moldando o presente.

Mas uma parte dessas famílias nunca desiste, com ajuda, em parte, de órgãos públicos, entidades de direitos humanos e até da mídia. “Arqueólogos da ditadura” e familiares seguem rastreando ossadas – em necrotérios, ossariums, cemitérios, áreas rurais – e, quando têm “sorte”, revivem o impacto do encontro com os restos de entes desaparecidos. A busca passa pelo caso mais notório, o Cemitério Dom Bosco (Perus), em São Paulo. Em 1990, motivado por denúncias e investigação do jornalista Caco Barcelos – veja matéria da época -, foi descoberta uma vala clandestina no cemitério, contendo 1.049 sacos com ossadas humanas — vítimas da ditadura militar, esquadrões da morte e também indigentes. Foi o palco da abertura da primeira vala clandestina que abrigava corpos de vítimas da repressão durante a ditadura civil-militar.
Pesquisas geofísicas recentes indicam que pode haver uma segunda vala clandestina ou parte não escavada da vala original no Cemitério de Perus, além da já conhecida.
Como você observa, só nessa escavação, triplica o número oficial de desaparecidos, porque, numa época de esquadrão da morte como prática policial cotidiana, nem todos eram militantes políticos. Pelo menos dois foram identicados no mar de ossos. Um deles, Dênis Casemiro, que integrou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi preso em Imperatriz (MA) por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), sob comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturado e morto sob custódia. A versão oficial alegava tentativa de fuga. Foi desovado em Perus. E o marinheiro Grenaldo de Jesus Silva, preso e expulso no início da ditadura, após reivindicar melhores condições de trabalho, e que, depois de algum tempo na clandestinidade, foi sequestrado em São Paulo, e morto.
O evento foi um marco na luta dos familiares de vítimas, na medida em que deu início ao processo de reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, das violações de direitos humanos cometidas pela ditadura. O processo de identificação das ossadas segue em desenvolvimento até hoje. Um monumento em homenagem às vítimas da repressão foi erguido no local.

No Cemitério de Vila Formosa, também em São Paulo, uma vala clandestina subterrânea foi encontrada em 2010. Perícias encontraram um ossuário clandestino sob um canteiro perto de um letreiro no Cemitério, na zona leste de SP. Cerca de 16 ossadas foram removidas, possivelmente de desaparecidos políticos, sepultados como indigentes. Entre os desaparecidos está Virgílio Gomes da Silva, codinome “Jonas”, um operário, sindicalista e guerrilheiro brasileiro que desempenhou papel significativo na resistência contra a ditadura militar. Lutou pela Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella, liderou o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e, capturado por agentes da Operação Bandeirante (Oban) em São Paulo e levado para ser torturado no DOI-Codi, morreu 12 horas após sua prisão. É considerado, historicamente, o primeiro desaparecido político da ditadura brasileira. Há também o caso de Antônio Raymundo Lucena, conhecido como “Doutor”, acordado e executado do lado de fora da casa, em 1970. Oficialmente, seu corpo nunca foi recuperado — acredita-se que tenha sido sepultado em vala com ácido, junto com outros desaparecidos.
Em outra vala clandestina, foram encontrada, no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro, curiosamente dentro da Vila Militar, Zona Norte do Rrio, ossadas desaparecida, a ponta do iceberg de outra área de desova militar. Esperava-se achar os restos do militante comunista Getúlio de Oliveira Cabral, filiado ao Sindicato dos Metalúrgicos do Estado do Rio de Janeiro, morto em uma ação comandada pelo DOI-CODI do I Exército, em 1972. Foi preso, torturado e executado, tendo seu corpo carbonizado dentro de um veículo para encobrir os crimes. Em maio de 2025, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos retomou as buscas após 14 anos de paralisação.
Em 1991, o Grupo Tortura Nunca Mais chegou a exumar dois mil ossos no interior de Goiás, na região entre Rio Verde e Jataí, revelando a ossada e dentes do militante Márcio Beck Machado, assassinado, e que, segundo relatos, teve a cabeça teria removida e levada a Goiânia. A procuradora Eugênia Augusta Gonzaga é procuradora regional da República e presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), afirma que o número real de desaparecidos pode ultrapassar 10 mil – incluindo camponeses, indígenas e outras vítimas não reconhecidas oficialmente -e defende novas estratégias de busca em locais ainda não catalogados, incluindo territórios indígenas e zonas de conflito agrário que sequer entraram no radar oficial.

Em uma das áreas mais inóspitas, na região da Guerrilha do Araguaia (Pará/Tocantins), as buscas por guerrilheiros desaparecidos voltaram a ser estruturadas pela Comissão Especial em 2024–2025, mas focadas em áreas mais remotas de mata, sítios históricos e ossuários informais. Notadamente na Serra das Andorinhas. Na area do Cemitério de São Geraldo, expedições da década de 1990 encontraram ossadas que possivelmente pertencem ao guerrilheiro Francisco Manoel “Preto” Chaves, mas a falta de material genético impediu a identificação oficial. Relatos de que militares removeram e dissolveram corpos em ácido, lançando fragmentos em rios ou enterrando-os em locais tortuosos, sugerem que locais ainda não inspecionados (barreirões, ilhas do rio Tocantins e regiões de inundação) podem conter fragmentos ou cemitérios clandestinos.
A ditadura não se resumiu, em sua barbárie, a isso. Os números são subestimados – porque, obviamente, se baseiam no que se pode provar, e muitos desaparecidos não estão contabilizados e podem estar em regiões rurais, em territórios indígenas ou zonas de conflito agrário que não foram alvo das buscas oficiais. Recentemente, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos iniciou uma série de diligências em Recife, incluindo visitas aos cemitérios da Várzea e Santo Amaro. A região de Marabá (PA), no entorno de Nova Marabá e São Miguel, sofrem investigações por abrigar antigos centros clandestinos de tortura, como a Casa Azul, usada durante a ditadura como fachada de órgão público. Corpos ainda ocultos sustentam o debate sobre memória, impunidade e luta por reparação. Ossos continuam silenciados.
- Recorte da charge de Angeli, publicado pela revista Piauí. Relatório Final considerou 434 casos de pessoas vitimadas pelo Estado brasileiro, no contexto de repressão política – 232 desaparecidos -, conforme apurado pela Comissão Nacional da Verdade. Fotos: Reprodução.