Padre Júlio e a Política
O caso envolvendo padre Júlio revela mais do campo progressista do que da vida do personagem principal. O caso é sabido, mas vale um resumo em poucas palavras. A Arquidiocese de São Paulo determinou a suspensão das transmissões das missas da Paróquia São Miguel Arcanjo. O padre também foi proibido de usar suas redes sociais. A justificativa dos seus chefes é que a determinação objetivava protegê-lo, possivelmente da superexposição pública.
Em nota, padre Júlio Lancellotti reafirmou sua “pertença e obediência à Arquidiocese de São Paulo”. Em qualquer lugar do mundo, o caso já estaria encerrado. Em termos práticos e racionais, um cidadão recebe de seu chefe uma determinação para ser mais discreto e não usar suas redes sociais. Qualquer cidadão nesta condição e em país democrático pode pedir demissão, contestar a ordem ou se calar. Padre Júlio, no caso, reafirmou obediência e se calou. Um outro cidadão que trabalhava nesta mesma organização se rebelou, contestou e acabou expulso da empresa. O nome deste outro personagem é Leonardo Boff.
Portanto, estamos diante da mesma empresa e de dois personagens que receberam ordens similares e reagiram de maneiras absolutamente opostas. Um contestou e levou a discussão sobre a determinação institucional à público, criando um grande debate moral e ético também no interior desta instituição. O outro, se recolheu às suas funções institucionais.
Porém, a reação de parte – considero uma bolha pequena até aqui – do campo progressista reagiu nas redes sociais como se fora uma censura e perseguição ao padre Júlio. Alguns adjetivaram o padre como “santo” e outros chegaram a traçar um paralelo com o flagelo de Jesus. Não foi exatamente o que ocorreu, mas a hipérbole parece indicar algo sobre a desorientação do campo progressista brasileiro.
Comecemos com a reação dos maiores nomes do catolicismo progressista em nosso país. Não houve nenhum grande movimento a respeito do caso. Não houve uma reação como ocorreu no caso de Leonardo Boff. A reação nas redes sociais veio de alguns, sendo parte deles não necessariamente católicos.
A reação desgarrada indica ainda uma camada menos visível. Padre Júlio Lancellotti não é exatamente uma liderança coletiva e de enfrentamento das estruturas de poder da igreja católica ou da sociedade brasileira. No jargão católico, estaria mais para “Servo de Deus” no sentido de seguir a Deus com fé e obediência. Júlio não se envolve com grandes mobilizações sociais de contestação, não é visto em grandes mobilizações como as que ocorreram recentemente defendendo a vida das mulheres ou rejeitando projetos de lei antipopulares. Sua ação pessoal tem paralelo com o apoio que cristãos espíritas dão aos desvalidos. Com a diferença que os espíritas não disseminam suas ações em redes sociais. Aqui há um elemento contraditório de discrição funcional e hiperexposição pública.
Mas, como afirmei inicialmente neste artigo, o tema aqui não é o personagem, mas a motivação às reações de apoio a algo que o próprio padre não solicitou e nem mesmo esboçou desconforto com as ordens recebidas.
Então, o que motivou as reações de parte do campo progressista brasileiro?
A hipótese que mais se aproxima de algo explicativo é a busca de um emblema. Uma pessoa solitária e desprendida, que vive com e para os marginalizados. Um símbolo de encarnação do sofrimento alheio. Alguns católicos progressistas do nosso país afirmam que Jesus Cristo não pregou a criação de uma igreja – embora tenha citado em alguma passagem da Bíblia -, mas que criou, na verdade, um movimento. No caso, padre Júlio age ao contrário. Mas, mesmo assim, a projeção que os que reagiram nas redes sociais ontem em seu favor não parecem afeitos à igreja, mas ao movimento que padre Júlio não parece ter incentivado. Justamente porque sua ação é solitária, é um exemplo pessoal vinculado à sua fé – fé é uma dimensão individual e uma experiência pessoal -, um “imperativo categórico”.
Contribui para este alinhamento moral que não se relaciona tão fielmente às intenções e práticas do personagem que defendem o ataque que padre Júlio recebeu e recebe da extrema-direita. Neste caso, parece que o dito popular que afirma que “o inimigo do meu amigo é meu inimigo” é a orientação subjetiva para o apoio. Haveria, então, uma politização exacerbada pela negação ao ataque, mas não exatamente ao projeto do personagem atacado.
O que estou procurando sugerir é que o que ocorreu ontem revela uma busca intensa de propósito e de coesão de um campo político-ideológico que vem se defendendo com unhas e dentes desde o avanço da extrema-direita que surfou no macartismo desencadeado pela Operação Lava Jato. Houve, a partir daí, a desmontagem de um aparente consenso moral em nosso país. Os batentes da “Janela de Overton” foram quebradas e o código moral com o qual nos relacionávamos no Brasil se desfez. A desorientação é normal para quem se fiava por este código moral, esta limitação e autocontrole percebidos e legitimados para a convivência social.
Assim, se não fosse padre Júlio, a reação em apoio a outro perseguido que parcial ou totalmente é identificado com os princípios que foram quebrados desde 2015, seria a mesma. Um reação solidária aos princípios. Uma autoafirmação ética e moral.
Estas duas hipóteses que apresentei – a busca de um emblema e a autoafirmação morais – dizem muito dos apoiadores que reagiram ontem. Contudo, não se relacionam exatamente ao fato ocorrido. E pouco importa que não se relacionem em termos políticos.
Porque politicamente, a decisão tomada foi de uma instituição fechada, total (nos termos de Erving Goffman), sobre a conduta de um dos seus membros. Não houve exatamente uma ordem contestada ou interpretada pelo afetado como algo que lhe humilhasse ou prejudicasse. Uma reação a esta situação vinda da sociedade civil parece, então, um ato sem endereço claro. Afinal, a reação teria sido endereçada à Arquidiocese, ao Vaticano ou ao Cardeal que emitiu a ordem ao padre? Qual o objetivo concreto e movimento desejado se o endereço foi a hierarquia da instituição ao qual o padre se vincula e reafirmou obediência?
Não há resposta certa à esta pergunta justamente porque a reação de ontem foi mais voltada para a afirmação dos códigos morais de quem reagiu que à instituição que ordenou ao padre sua retirada da cena política.
Enfim, o que me parece o emaranhado embutido na reação de ontem foi que a vida social e política é mais complexa que o imaginado. Se aproxima, inclusive, da complexidade do jogo político no campo institucional. Envolve múltiplas determinações e motivações, grande parte não visível, não dita. Há algo de racional, mas muito de subjetivo, na tomada de decisão e na reação coletiva, ampla ou restrita.
A sociologia estudou e estuda essas motivações que orientam a ação social. Mesmo os sociólogos tentando explicar, continua uma aura de mistério porque o que motiva nem sempre é dito, como no início de um processo terapêutico. Não é dito racionalmente para fora, mas também para si. Afinal, é um mistério.