PF: violência online crescente obriga mudanças no ECA Digital e Marco Civil da Internet
O diretor substituto de Combate a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal (DCIBER/PF), Valdemar Latance Neto, apresentou um panorama alarmante sobre o aumento da violência digital contra crianças e adolescentes no país e defendeu mudanças urgentes na legislação brasileira. Em sua fala no Congresso, o delegado destacou que a internet se tornou “a nova rua” — o espaço onde hoje se reproduzem os riscos, abusos e aliciamentos que antes preocupavam as famílias no mundo físico.
“A rua agora está na mão da criança. O estranho está ali, a um clique de distância. E muitos pais, sem perceber, estão delegando a educação digital dos filhos ao celular”, alertou Latance.
Competência federal
Criada em 2023, a Diretoria de Combate a Crimes Cibernéticos (The Cyber) da PF passou a tratar os crimes digitais como prioridade institucional. Latance lembrou que nem todo crime cometido na internet é de competência federal — apenas aqueles com previsão em tratados internacionais e caráter transnacional, como os de abuso sexual infantil envolvendo diferentes países.
A PF, segundo o diretor, vem firmando Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) com as Polícias Civis estaduais para ampliar a integração, o compartilhamento de dados e a capacitação. Até o momento, sete estados já assinaram os acordos.
Dados preocupantes
Latance apresentou dados recentes da pesquisa TIC Online 2025, que revelam que 92% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos são usuários da internet — a maioria via telefone celular.
Além disso, 65% já utilizaram ferramentas de inteligência artificial generativa, o que, segundo ele, pode afetar o desenvolvimento cognitivo se usado de forma indiscriminada.
Nos grupos mais jovens, o uso se concentra em jogos online, apontados como o principal ambiente de aliciamento. À medida que envelhecem, aumenta o uso de redes sociais como WhatsApp, YouTube, Instagram e TikTok.
“A violência deixou de estar apenas nas ruas ou nas escolas. Agora ela também está dentro do celular”, resumiu o delegado.
Escalada da violência em alta
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra aumento em todas as formas de violência contra crianças e adolescentes: doméstica, escolar e digital. O diretor classificou o cenário como “gravíssimo”, destacando especialmente o avanço dos crimes de ódio e da subcultura misógina em ambientes virtuais — como grupos de incels no Telegram, onde meninas são aliciadas, humilhadas e, em casos extremos, levadas à automutilação e ao suicídio. A PF mantém cooperação com a SaferNet, com campanhas educativas voltadas à prevenção, sobretudo entre meninas adolescentes.
Latance citou números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública que apontam 87 mil estupros registrados em 2024, sendo 76% contra vulneráveis — em sua maioria meninas negras com menos de 13 anos. “O agressor raramente é o estranho. É o pai, o padrasto, o irmão, o vizinho. É alguém próximo”, disse o delegado, criticando o silêncio social e familiar que encobre os abusos.
Ele destacou também a subnotificação entre meninos, que segundo a PF é ainda maior por razões culturais, e reforçou que a instituição evita o uso do termo “pornografia infantil”, por considerá-lo um eufemismo que minimiza a gravidade do crime. “Não é pornografia infantil. É estupro de criança. A palavra precisa refletir a violência do ato.”
Operações e prevenção
A PF realiza operações diárias de combate ao abuso sexual infantil, como a Proteção Integral 3, em que foram cumpridos 184 mandados de busca e 55 prisões em flagrante com apoio de 16 Polícias Civis.
Somente em 2024, a corporação conduziu 1.043 operações e resgatou 100 vítimas em situação de abuso contínuo.
Além da repressão, a PF desenvolve o projeto “Guardiões da Infância”, em parceria com a SaferNet, com 160 policiais voluntários que ministram palestras para professores, famílias, adolescentes e redes de proteção. O programa atua também na capacitação para depoimento especial de vítimas, com protocolos inspirados na Polícia Civil do Distrito Federal. “Depois que acontece um abuso, a marca na alma é indelével. A única vitória é a prevenção”, afirmou.
Aprimoramento legislativo
O delegado apresentou quatro propostas principais ao Congresso:
- Alterar o Marco Civil da Internet para incluir o poder do delegado e do Ministério Público de requisitar a preservação imediata de dados digitais, conforme o artigo 16 da Convenção de Budapeste — etapa essencial para evitar a perda de provas em crimes cibernéticos.
- Corrigir o artigo 29 do “ECA Digital”, que omitiu a autoridade policial entre os legitimados para solicitar a remoção de conteúdos abusivos.
- Ampliar a Lei de Crimes Hediondos, incluindo todos os tipos previstos nos artigos 240, 241, 241-A e 241-B do ECA, garantindo proporcionalidade e endurecimento das penas.
- Tipificar especificamente a conduta de quem hospeda ou administra fóruns e sites destinados ao compartilhamento de material de abuso sexual infantil, com penas mais severas.
“Nossa legislação precisa reconhecer que quem cria e mantém esses espaços é tão criminoso quanto quem compartilha o conteúdo”, concluiu Latance.
Política de Estado e não de ocasião
Encerrando sua fala, o diretor reafirmou que a prioridade absoluta da PF é a proteção de crianças e adolescentes, como determina o artigo 227 da Constituição. “A Constituição exige punição severa para o abuso sexual de crianças. E exige de todos nós — Estado, famílias e sociedade — o dever de proteger. O que está em jogo não é um dado estatístico, é a dignidade humana”, afirmou.
A mensagem final, em tom de alerta, ecoou o espírito das audiências sobre o tema: sem integração, educação digital e atualização legal, o Brasil continuará falhando em proteger sua infância no mundo conectado.
O diretor substituto de Combate a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal (DCIBER/PF), Valdemar Latance, participou de audiência pública sobre o tema: “Reforma da Legislação Penal, Processual Penal e repressão aos crimes cibernéticos contra crianças e adolescentes”, promovida pelo Grupo de Trabalho da Câmara destinado a “Estudar e Propor soluções Legislativas acerca da Proteção de Crianças e Adolescentes em Ambiente Digital”.