Renato Freitas e o mundo da fofoca e da carnificina
O deputado estadual Renato Freitas andava pela avenida Vicente Machado, em Curitiba, quando um homem o abordou com ofensas. Segundo relato do deputado, o agressor o seguiu durante algumas quadras e o instigou a travar uma briga de rua com ele o que, finalmente, ocorreu. Os dois se atracaram e o deputado foi atingido no nariz.
Quando li a notícia, fiquei pasmo. O extremismo campeia no centro-sul do país. Gente que acredita que as diferenças se resolvem com ofensas, intimidações e violência. Um absurdo, mas este expediente é conhecido.
O que me deixou pasmo é o deputado aceitar a provocação. Poderia ter filmado o agressor, gritado ou se atirado no chão. Assim, definiria a situação nitidamente. Ao aceitar revidar, politicamente aceitou a provocação.
Quando li a notícia, assistia uma minissérie na Netflix intitulada “O Monstro em Mim”. Logo no início da minissérie, um dos personagens dispara que o que atrai no mundo de hoje é a fofoca e carnificina. Estava dada uma convergência de nomes e situações que deve ocorrer uma vez em cada século.
Em determinado episódio dessa minissérie, a personagem principal escreve sobre o impulso de morte sugerida por Freud. Uma pulsão que nos levaria ao extremo para provar que estamos vivos. Uma tentação em passar dos limites.
Renato é jovem, negro e marxista. Aparenta ser mais jovem do que é (tem 41 anos de idade). Este perfil o faz parte do segundo escalão de lideranças petistas. Não seria assim nos anos 1980. Mas, o século 21 envelheceu o PT. Renato não atrai muita atenção da cúpula do partido e nem mesmo do governo federal. O jovem deputado não segue a etiqueta lulista. Ao contrário, ele sugere que a bancada conservadora da assembleia legislativa do Paraná é formada por “pastores trambiqueiros que não estão nem aí para a vida”. Diz que nunca falou com Lula e acha que o presidente concilia em demasia. Flerta com o isolamento. Novamente, uma marca de distinção positiva se estivéssemos nos anos 1980.
Ele passou boa parte da infância pelas ruas e é fiel a esta origem. Foi do PSOL e se transferiu para o PT, se elegendo como símbolo da cultura periférica, do rap e da população em situação de rua.
De certa maneira, Renato Freitas é uma expressão clara do curto-circuito entre o passado e o presente do PT. O passado de contestação petista, das campanhas cujo slogan era “trabalhador vota em trabalhador”. Este slogan era a senha para que candidatos barbudos desfilassem por segundos na campanha eleitoral, destacando de seus currículos o confronto com a ditadura ou a sua liderança grevista. Porém, o presente petista é dominado por parlamentares que comandam o partido. Parlamentares que se forjaram vociferando nas tribunas e amenizando nos corredores das casas parlamentares. São, na essência, dóceis.
Já o deputado que usa cabelo black power parece fora do lugar, meio anacrônico, meio à margem do maior partido de centro-esquerda do país.
Ao aceitar a provocação na rua, não fez uma leitura geral da situação. Gingou na frente do provocador, parecia pronto para jogar capoeira. Do ponto de vista político, se decidiu enfrentar um ato de racismo, o mínimo que poderia fazer a partir de agora é seguir a reação do jogador Vinícius Jr. que fez da denúncia contra o racismo uma identidade pessoal, um elemento catalisador de força e simpatia.
O que gostaria de aprofundar aqui é este instinto de Renato Freitas de flertar com o limite e o despreparo atual de petistas em lidar estrategicamente com as provocações.
Tempos atrás, no período de fundação do PT, provocações da extrema-direita eram discutidas entre militantes. Justamente porque eram cotidianas. O ódio contra a esquerda de hoje era a mesma nos anos 1970 e 1980. Sabíamos das armadilhas e nos preparávamos.
Em passeatas, havia sempre um grupo de fortes militantes que faziam a segurança dos manifestantes, se postando nas beiradas das ruas por onde passávamos. Nos preparávamos para enfrentar a cavalaria da PM, tão empregada em jogos de futebol para intimidar torcedores mais excitados. Havia preparo nos piquetes de greves. Havia leitura dos espaços urbanos, das rotas de fuga.
Também havia preparo para enfrentar debates públicos, para esgrimar e refutar farpas verbais, além das armadilhas retóricas. A ironia e o preparo de conteúdo, além do posicionamento de militantes nos locais de debate eram algo corriqueiro. Aprendíamos a nos posicionar no formato de ferradura, ocupando espaços estratégicos nos auditórios.
Renato estava andando só pelas ruas de Curitiba. Peito aberto e coração tranquilo. Solitário. De repente, topa com a violência. E não parecia ter em mente uma reação calculada. O que veio à mente era a defesa pessoal, aprendida, talvez, na infância.
O que me pergunto há alguns anos é o que aconteceu com este preparo todo da esquerda e do campo progressista adquirida no passado. Onde foi parar esta leitura atenta da realidade, a preparação para as provocações, as trilhas mentais para lidar com adversidades políticas e, principalmente, a solidariedade militante. O ataque a um militante era prontamente respondida e se espalhava entre os pares para criar uma rede de apoio e denúncia. Numa época que não havia smartphones. Uma reação em cadeia que acabava por acionar parlamentares, advogados, Ministério Público e concentração na porta de delegacias. A reação era sempre da militância. Nunca do agressor ou da direita. O que teria desmontado esta rede de atenção e este preparo?
Enfim, o episódio envolvendo Renato Freitas foi mais um na vida de um jovem negro brasileiro que decidiu enfrentar sozinho o mundo das fofocas e carnificinas. Solitariamente. Como uma marca do abandono político.