
Um golpe silencioso contra os autores

Há projetos de lei que chegam disfarçados de boas intenções, mas que, por trás da aparência democrática, escondem riscos profundos à cultura e à dignidade do trabalho criativo. O Projeto de Lei nº 2885/2023, de autoria do deputado Kim Kataguiri, é um exemplo disso. Lobo em pele de cordeiro. A proposta do menino do MBL altera a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998) para permitir que um autor possa renunciar à proteção patrimonial de suas obras — isto é, abrir mão dos seus direitos econômicos, total ou parcialmente, ainda em vida.
À primeira vista, soa como um gesto de liberdade: quem cria poderia decidir liberar sua obra ao domínio público, permitindo maior circulação cultural. Mas, na prática, trata-se de uma armadilha descarada, que ameaça o próprio alicerce sobre o qual se ergue a economia criativa brasileira. Trata-se de um equívoco jurídico e ético. O direito autoral é reconhecido pela Constituição Federal como um direito de propriedade intelectual. Ele protege não só o autor, mas o trabalho humano e o tempo dedicado à criação: a música, o texto, o roteiro, o quadro, a fotografia, enfim, a ideia de alguém transformada em arte. Permitir que o criador renuncie a esse direito — e, pior, que o faça de forma irrevogável — é inverter a lógica da proteção constitucional. É admitir que o autor possa abrir mão daquilo que o Estado reconhece como expressão da sua própria dignidade profissional.
Para contextualizar: hoje, uma obra entra em domínio público setenta anos após a morte do último compositor vivo de uma canção. A tal “liberdade de renunciar” a isso seria, na verdade, um novo instrumento de coerção. Plataformas, gravadoras e editoras poderiam exigir essa renúncia como condição para publicar, gravar ou distribuir uma obra. Empresas interessadas em uso de obras protegidas poderiam seduzir criadores, com ofertas sedutoras, porém incoerentes com o valor real dessa obra, privando rendimentos que durariam por muito mais tempo. O resultado disso seria uma geração de criadores desprotegidos, trabalhando sem garantia de renda futura — e um mercado ainda mais concentrado nas mãos de grandes corporações. Uma afronta aos tratados e à cultura.
A lei já começa estapafúrdia do início: O Brasil é signatário da Convenção de Berna e do Acordo TRIPS, que estabelecem prazos mínimos de proteção autoral. A proposta de Kataguiri, ao permitir que cada autor decida individualmente quanto tempo suas obras permanecerão protegidas, criaria um caos jurídico e uma insegurança internacional sem precedentes. Obras brasileiras poderiam deixar de ser reconhecidas ou protegidas no exterior, e o país passaria a ser visto como um território de fragilidade institucional no campo da propriedade intelectual. Há milhares de famílias que dependem dos direitos autorais de seus pais e avós.
Os defensores do projeto alegam que a medida ampliaria o acesso à cultura. Pura falácia! Nada mais enganoso. A liberação antecipada de obras ao domínio público não democratiza o consumo cultural; apenas transfere o controle do lucro para intermediários poderosos. Trata-se aqui do velho mito do acesso. O verdadeiro acesso à cultura se dá com políticas públicas, educação, bibliotecas, incentivos à produção local e plataformas que remunerem de forma justa quem cria.
Conceder ao mercado o poder de induzir a renúncia de direitos é o oposto da democratização. É precarização disfarçada de liberdade. Um retrocesso.
O direito autoral não é um privilégio, mas uma forma de reconhecimento e sobrevivência para quem vive da criação. Ao longo de décadas, construiu-se um sistema que busca equilibrar o interesse público com o direito do autor. O Projeto de Lei nº 2885/2023 rompe esse equilíbrio e ameaça todo o ecossistema cultural brasileiro.
Mais do que uma questão jurídica, trata-se de uma questão moral: o trabalho criativo é um patrimônio da nação, e protegê-lo é proteger a própria ideia de cultura como bem público. Permitir que se abra mão dele é legitimar a exploração.
Por isso, é urgente rejeitar o projeto e reafirmar o que a Constituição já determina: o direito do autor é inviolável, e sua proteção é um dever do Estado e da sociedade. Sem isso, o Brasil deixará de ser um país de criadores e passará a ser apenas um país de explorados.
- Imagem gerada em IA