
Um país em que todo debate é infantilizado
A discussão sobre a possível camiseta vermelha da Seleção ofereceu aos brasileiros a chance de saber se essa ‘instituição’ nacional ainda significa alguma coisa para o país. Mesmo que se saiba, por antecipação, que não significa mais nada com algum valor simbólico de expressão de identidade.
Mas a maioria preferiu o que é mais fácil. E o mais fácil hoje é a infantilização de qualquer tentativa de conversa. As reações contra a camiseta são do primário do que um dia se chamou de educação moral e cívica.
Todos os clichês patriotas foram ressuscitados, à moda do que acontecia na ditadura e se repete agora com as vozes do fascismo. Para gritar que a Seleção é a alma do Brasil. Não é mais nada. Nem a seleção, nem a camiseta, nem o amarelo.
É passadista, é terrivelmente saudosista e é inútil a tentativa de trazer para hoje a cena em que e, em 1958, Didi pega a bola na frente da grande área do Brasil, depois do gol da Suécia, e caminha de cabeça erguida em direção ao centro do campo, com Pelé ao seu lado. Os dois combinaram ali: vamos virar esse jogo. E viraram.
Muitos já disseram que aquela cena começa a reverter nosso vira-latismo. Mas aquilo não se repetirá nunca mais, porque cenas como aquela só continuam existindo porque não podem ser copiadas na grandeza dos seus significados. Não teremos nada parecido.
O debate aparentemente sério sobre a camiseta vermelha conseguiu unir esquerda e extrema direita na ilusão de que defendem uma expressão da pátria amada. Essa pátria de chuteiras se extinguiu muito antes do bolsonarismo, que apenas se apropriou do que ela havia sido.
O fascismo brasileiro é dono da imagem da Seleção, da camiseta da Seleção, das cabeças dos jogadores da Seleção (sim, com as exceções), dos treinadores dos times, dos dirigentes.
É essa ilusão que une Galvão Bueno, Eduardo Girão, Nikolas Ferreira, Carla Zambelli, Casagrande, Flávio Bolsonaro, Randolfe Rodrigues. É o patriotismo na sua forma mais primitiva.
Em tempos de dominação da retórica e das ações políticas da extrema direita, conseguiram juntar o ultraconservadorismo à parte da esquerda temerosa de perder o que não tem mais. Foi-se a identidade. Foi-se o amarelo. Foi-se o sentimento de nação que a Seleção carregava até o fim do século 20.
Por isso o país se infantiliza e leva a sério uma provocação dos fabricantes de marcas e camisetas, que não querem saber de civismos, querem vender seus produtos. No fim, o país adulto foi o que brincou com a novidade e nos divertiu com os memes do ameaçador vermelho da Seleção.
O criador da camiseta amarela, o escritor gaúcho Aldyr Garcia Schlee, acharia tudo muito engraçado. Schlee morreu em 2018, chateado com o sequestro da camiseta pelo bolsonarismo.
Pouco antes da sua morte, conversei com ele, por telefone, e falamos de quase tudo, menos da camiseta. Determinei a mim mesmo, desde o início da conversa, que não iria incomodá-lo com algo que o aborrecia.
Quando a história da camiseta vermelha se espraiou, escrevi numa rede social sobre a necessidade da prevalência do humor nas abordagens sobre a provocação do fabricante.
O jurista Aldyr Rosenthal Schlee, filho do escritor, escreveu num comentário: “O pai estaria rindo disso tudo”. É bom imaginá-lo se divertindo, no mesmo tom da sua literatura, com a possibilidade de ver a camiseta amarela dividir as atenções com uma camiseta vermelha.
O humor é o que nos salva nessa controvérsia tomada pela chatice cívica de direita e esquerda. A Seleção não representa hoje 10% do que Rebeca Andrade significa para o Brasil. Mas Rebeca não vende camisetas.
Foto: Rafael Smaira/Midia Ninja/Carla Carniel/Reuters/Fernando Torres/CBF