Zeitgeist

11 de agosto de 2025, 16:29

Jornalistas com a minha idade e tempo de profissão sabem o quanto o ambiente de trabalho mudou nos últimos 40 anos. Nos anos 90, as redações eram equipadas com máquinas de escrever, os jornalistas fumavam desbragadamente e o barulho era ensurdecedor.

As equipes de televisão eram compostas por ao menos cinco pessoas – repórter, cinegrafista, operador de áudio/VT, iluminador e motorista. As ilhas de edição eram caríssimas e ocupavam salas inteiras. Recursos de pós-produção eram limitados a trabalhosas e raras fusões A/B, privilégio dos poucos profissionais que eram rotulados como ‘especiais”. Hoje tudo isso cabe no gabinete de um PC.

A interface com o mundo eram os teletipos e o famigerado telex, que transmitia textos a incríveis 48 bauds – 48 caracteres por segundo, no máximo. Ninguém pensava em gigabytes, terabytes, nada disso.

A progressão na carreira era lenta. Na Globo, chegava-se ao JN após anos de provação em todos os demais telejornais, começando pela edição local da madrugada.

Ainda havia “pestapistas” e revisores, copidesques,  e a diagramação dos jornais impressos era feita na “pica” (pronuncia-se ‘paica’), à mão, um trabalho artesanal estafante e preciso.

Nas empresas de comunicação, jornalistas e contatos publicitários eram inimigos viscerais. Uns sempre desconfiavam que outros viviam para se atrapalhar mutuamente.

A chegada dos computadores levou embora das redações o alarido, os cigarros e muitos empregos. Revisores desapareceram. O texto empobreceu quando os copidesques foram aposentados.

Operadores de VT e iluminadores tiveram que procurar novos empregos. Hoje, até mesmo os repórteres cinematográficos são um luxo ostentatório para algumas poucas empresas que sobraram ao final desse brutal processo de transformação.

Contrariando a Teoria do Newsmaking, os velhos jornalistas costumam dizer que a maneira de fazer o jornalismo, a abordagem técnica, mudou, mas não os valores e as técnicas de apuração. O jornalismo continuaria a ser definido como um conjunto de técnicas embalado por um estatuto ético.

Todo esse processo não aconteceu sem muita dor e sofrimento. Os mais velhos tiveram muita dificuldade para se adaptar aos computadores. A fusão de funções antes específicas trouxe uma sobrecarga brutal de trabalho. Os que podiam se aposentar, trataram de fazê-lo antes de serem tragados pelas garras das tecnologias que se impunham.

Os códigos de ética permaneceram intactos. Mas o trabalho do jornalista foi sendo redesenhado pelo imperativo do tempo. A distância abissal entre o departamento comercial e a redação desapareceu.

Jornalistas famosos viraram youtubers, tiktokers e influencers. Muitos foram obrigados a vender seus próprios conteúdos. A palavra “jabaculê” entrou em desuso e hoje ninguém mais sabe o que significou um dia.

Mas o velho modelo ainda resiste encarnado nas poucas redações que sobreviveram. Nelas ainda laboram alguns jornalistas que se salvaram do meteoro tecnológico e conseguiram manter o emprego, a carteira assinada e a jornada de sete horas.

Até cinco anos atrás, eu era um desses felizardos: não fazia ideia do que era o mundo novo que me aguardava quando deixei meu último emprego regular.

Meu caso não tem nada de singular. Saí para desbravar a internet como os navegadores se lançavam ao mar no Séx. XVI – sem conhecer absolutamente nada do que me esperava logo ali.

Criei um canal chamado TV Democracia acreditando que minha expertise em telejornalismo antigo me levaria a algum porto seguro. Doce ilusão!

Quatro anos mais tarde, com todo o dinheiro empatado num negócio que não prosperava, tomei consciência de que meus dotes profissionais, meus prêmios Esso e a respeitabilidade adquirida em quatro décadas de bom jornalismo não valiam mais nada.

O canal fez um sucesso relativo de público e crítica, mas a ideia de viver da monetização do Youtube formando uma audiência qualificada e numerosa com jornalismo autêntico se revelou uma temeridade quase pueril.

Foi preciso estudar muito até entender o que são KPIs, o que é engajamento, funil de vendas, e aprender a operar os códigos quase indecifráveis das centrais de negócios da Meta e do Google. Sem isso, muito do que produzi se perdeu no buraco negro da internet antes que alguém lesse, visse ou ouvisse.

Tenho encontrado colegas que são lançados nesse mar revolto da nova comunicação repetindo todos os erros que eu mesmo cometi. Tento alertá-los para a necessidade de voltar a estudar a fim de impedir que o zeitgeist  os esmague, triture e engula.

Hoje, trabalho em um portal respeitável, o ICL, e coordeno a implantação de outro, o HJur, site jurídico que está nascendo agora. Todos os dias me vejo nos colegas que, expelidos do mercado pelo novo jornalismo, me procuram à cata de oportunidades de trabalho que infelizmente não existem mais.

O pior, no entanto, foi o que aconteceu aos destinatários do nosso ofício, o público. Enquanto os jornalistas iam perdendo importância, o campo da comunicação social era apropriado de maneira descarada pela pior política, transformando a relíquia da boa informação num monturo de lixo a ser removido.

Enquanto comunicadores estavam presos ao velho mundo que se extinguia, o senso de sobrevivência e o oportunismo dos políticos sem valor foram tomando conta de tudo. Eles não tardaram a perceber que é fácil manipular a opinião pública utilizando notícias falsas, vilipendiando a verdade factual.

Agora, a luta pela informação ética e honesta talvez seja a trincheira mais desafiadora e importante em tempos de realidade virtual e inteligência artificial.

Pena que tenhamos chegado a este momento crucial tão em frangalhos quanto nos encontramos, ridicularizados e enxovalhados todo santo dia. O processo massacrante e humilhante não apenas despreza, ele deplora o jornalismo feito com boa técnica e boa ética. E tem triunfado sobre seus despojos.

Pois que a derrota nos sirva como estímulo. Se o bom jornalismo não puder sobreviver nesse novo tempo sombrio, ainda que seja para desmentir os erros dolosos do mau jornalismo, estaremos inexoravelmente fadados a regredir no plano civilizatório e a perecer como sociedade.

Imagem gerada em IA.

Escrito por:

Fábio Pannunzio é jornalista desde 1981, vencedor de 3 Prêmios Esso e do Troféu Íris América. Atuou nas principais redes de TV do Brasil. É autor do romance-reportagem A Última Trincheira. Atualmente é âncora no ICL Notícias e CEO do HJur. Fábio tem cinco filhos, e uma neta adolescente, Ele também é piloto privado e apaixonado por aviação.

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