
Marcha-comício para Jesus virou ato público pró-Israel e de campanha, expondo contrassenso e manipulação político-religiosa dos evangélicos por seus líderes
Evangélicos – especialmente os neopentecostais – e judeus não deveriam dar tanta liga. Ainda assim, numa manipulação religiosa, mas cinicamente política, tornou-se comum o uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos evangélicos no Brasil nos últimos anos, como na Marcha para Jesus desta terça-feira, 19 – com ares de comício e ato público pró-Israel. Via-se mais bandeiras de Israel, inclusive nos ombros do governador paulista e presidenciável Tarcísio de Freitas, do que o pendão brasileiro. Organizada pela Igreja Renascer em Cristo, a marcha-comício teve como tema “Jesus, Deus Forte”, mas o mote verdadeiro foi Israel – milhares de bandeiras foram distribuídas para os participantes e uma enorme bandeira do país do país do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, foi desfraldada no meio da multidão. No momento que os sionistas chacinam palestinos em Gaza e trocam bombardeios com o Irã, colocando o mundo apreensivo diante do risco de uma guerra global, com a possível entrada de tropas e armas norte-americanas do governo Trump.

Registre-se a coragem da dona de casa Marta Batista, 61 anos, que foi à marcha com uma bandeira palestina, junto de uma bandeira do Brasil. “Como evangélica, não aceito a política de eliminação de (Benjamin) Netanyahu”, disse Marta. Ela afirmou ter sido hostilizada por algumas pessoas, mas se manteve na marcha durante a passagem dos 7 carros de som. Menos mal.


Essa foi a 33ª edição da marcha, em plano feriado de Corpus Christi, com passeata, orações e mais de 20 shows gospel. Não houve nada parecido nas outras 32 edições – não nessa volúpia e fanatismo. Que virou também um comício do presidenciável Tarcísio de Freitas, em lugar de destaque no principal carro de som, que, bem ao estilo Jair Bolsonaro, caiu num transe religioso. O presidente Lula, que não queria ser a Geni do evento, preferiu ficar longe da marcha, e enviou no seu lugar o ministro da AGU, Jorge Messias, que é evangélico. “O Brasil tem um povo de fé, que não desiste”, disse Lula, mais tarde, lembrando que foi ele quem, em 2009, sancionou a lei que instituiu o Dia Nacional da Marcha para Jesus, hoje reconhecido no calendário oficial. Mas o PT não deixou barato. Em uma mensagem distribuída no grupo do curso Fé e Democracia para Evangélicos e Evangélicas, promovido pela Fundação Perseu Abramo — ligada ao PT —, Bolsonaro é acusado de ter espionado um pastor próximo à sua família. “Neste dia de Marcha Para Jesus, não se esqueça: Bolsonaro mandou espionar o pastor da própria família”, diz a imagem que acompanha uma fotografia do ex-presidente ao lado de Josué Valandro Júnior, líder da Igreja Batista Atitude, frequentada por Michelle Bolsonaro.

É preciso que se diga algo sobre essa “militância” evangélica pró-Israel em meio a guerras. Primeiro, não faz sentido, é mera manipulação feita por líderes religiosos conhecidos, os mesmos que fazem as pessoas doarem suas economias, seus carros, objetos pessoais, o que tiverem no bolso, na indústria dos dízimos. Pausa para divagação. A sofisticação da arrecadação por instituições religiosas tem feito templos construírem cofres. É a teologia da prosperidade – dos bispos, evangelistas, missionários, pastores, ou o nome que escolham para a exploração da fé alheia. Comecemos com Estevam Hernandes Filho, líder e fundador da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, organizador da marcha, também fundador da Rede Gospel. Ele e sua esposa, Sônia Haddad Moraes Hernandes, posudos nessa terça no carro de som, ao lado de Tarcísio, foram condenados e presos no Aeroporto de Miami, na Flórida, em 2007, com US$ 56 mil em dinheiro não declarado, que escondiam até na capa de uma Bíblia. O casal responde a processos no Brasil por suposta lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e estelionato. Coisa linda!

O pastor André Valadão, líder da Igreja Batista da Lagoinha e “cantor gospel”, que ao lado da esposa, Cassiane Montosa Pitelli Valadão, lançou um lança banco digital, chamado Clava Forte Bank – acreditem! – escreveu uma prece no Instragram pedindo para “Deus esmagar o inimigo” – tudo por Israel. Sua fintech tem ofertas de financiamento para construção de templos e até seguros de vida para religiosos. Já o bispo Samuel Ferreira, “presidente-executivo” da Assembléia de Deus do Brás, tem pedido orações a Israel.

Muitos desses ‘missionários’ tiveram passagem pelos Estados Unidos, onde aprenderam o pentecostalismo-capitalista, e desenvolveram a identificação com Israel, cujo Estado, reconhecido em 1948, é forte até hoje. “É a partir desse período que, de alguma maneira, surge uma inspiração protestante muito significativa, de constituir uma relação importante com o antigo testamento, alguns trechos bem específicos, como batalhas, o período de escravização do povo de Israel, tentando trazer a ideia de que a constituição dessa Nação seria fruto de uma promessa divina”, disse à BBC a antropóloga Jacqueline Teixeira, professora da USP. Isso, no antigo testamento gente. Israel, após conseguir ter seu Estado independente, inverteu a lógica e hoje é o perseguidor – no caso dos palestinos. Netanyahu diz que os palestinos devem deixar Gaza e ir para outros países. Trump enfureceu o mundo árabe ao declarar que o governo norte-americano assumiria Gaza e transformaria numa “Riviera do Oriente Médio”.

As diferenças são tão abissais que, se a bandeira da Albânia fosse hasteada na marcha, faria mais sentido. Os evangélicos, em primeiro lugar, “escolheram” sua igreja – entre as milhares de denominações evangélicas, em todos os rincões do país -, muitos “convertidos” de outras religiões depois de estarem com o pé na lama, enquanto os judeus dizem ter uma herança histórica: se consideram descendentes do povo hebreu. Começou a perceber como diferenças inconciliáveis só se resolvem com a servidão mental dos crentes, desde que seu líder religioso te diga o que adorar? Os cristãos reconhecem Jesus como o Messias, que morreu para limpar toda a humanidade de seus pecados. Para os judeus, no entanto, Jesus foi um profeta, e eles ainda aguardam a chegada do verdadeiro Messias, que virá à Terra para salvar o povo judeu.
Os evangélicos praticam seu culto em templos, lugares físicos que definem sua pujança – alguns palacetes, como o Templo de Salomão, sede mundial da Igreja Universal do Reino de Deus, em São Paulo -, e os judeus se reúnem nas sinagogas – a maior do mundo nem fica em Israel, mas em Budapeste, acredite-, palavra cujo significado é “casa de reunião”. Judeus e cristãos também diferem em seu relacionamento com as Sagradas Escrituras. Os judeus fazem referências acima de tudo ao Antigo Testamento, e em particular à Torá, os 5 livros que compõem a primeira parte da Bíblia. Eles não reconhecem o Novo Testamento, centrado em Jesus. O texto sagrado para os evangélicos – assim como para os católicos – é a Bíblia, composta pelo Antigo Testamento e, sobretudo, pelo Novo Testamento.
Os cristãos professam a redenção pessoal por meio de Jesus Cristo, que salva do pecado e eleva o homem acima de sua natureza falaciosa, em nome de uma Nova Aliança com Deus – mote para os dízimos. Enquanto os judeus vêem a salvação na perpetuação da tradição, do diálogo entre Deus e o povo eleito, da antiga aliança entre Deus e Abraão, e depois Deus e Moisés. Novamente, os cristãos adoram a Deus como Um e Triúno; os judeus reivindicam a unidade e unicidade de Deus. Até os sacramentos são diferentes entre as duas profissões de fé. E, só pra citar mais uma diferença, os cristãos pregam a confissão dos pecados e fazem rituais de exorcismo para expulsar o capeta, o que está completamente ausente na religião judaica.
À BBC, pastor e teólogo Guilherme de Carvalho, acentua que “o cristianismo perseguiu a nação judáica”, portanto sequer têm origens comuns. Outra conusão feita pelos líderes evangélicos, de propósito ou não, é confundir, na cabeça dos crentes, o judaísmo histórico com o atual estado belicista de Israel, que não reconhece o estado palestino, faz uma limpeza étnica e guerreia com os vizinhos que se opõe.

Mas vamos chafurdar na lama. Uma corrente de pensamento que influencia até hoje muitos evangélicos, dizem os especialialitas – não se sinta culpado, eu só soube ao ler a respeito – desconhecida pelo crente comum, mas drenada por seus líderes, vem do século 19, chamada de “dispensacionalismo”, uma cosmovisão bíblica com grandes repercussões na escatologia cristã, que encara Israel como uma espécie de “relógio do fim do mundo”, que afirma que a segunda vinda de Jesus Cristo envolverá o arrebatamento da igreja e um período de sete anos de “Grande Tribulação”, após o qual acontecerá a “batalha do Armagedon e o estabelecimento do Reino Milenar de Jesus Cristo”, que governará o mundo com seu trono estabelecido, claro, na cidade de Jerusalém. Aí é foda de argumentar. Para o pastor e teólogo Kenner Terra, falando à BBC, isso faz com que as leituras sobre a Israel moderna sejam “muito acríticas”.
Isso me faz lembrar – música numa hora dessas – de “Mais um na multidão”, parceria entre Erasmo Carlos e Marisa Monte. Embora seja uma balada romântica, é a palavra que eu procurava. Há eco fora das cavernas. “Há uma grande confusão entre a ideia do povo de Deus, do velho estado de Israel, lá dos descendentes de Abraão, e o atual e moderno estado de Israel. Essa é uma das grandes confusões da Igreja Evangélica hoje. São coisas distinas. Uma é o moderno estado de Israel, um estado político como outro qualquer, outro é o povo escolhido de Deus no velho testamento”, reforça Alexandre Gonçalves, pastor e teólogo. Nem entre os judeus há unanimidade com essa simbiose evangélica, que nutre uma visão idealizada e descolada do mundo real – leiam o noticiário, meu povo. É o que pensa o cientista social Daniel Annenberg. “Eu não vejo problema no pessoal gostar de Israel, querer conhecer, tenho orgulho de ser de Israel, mas agora, na cabeça da parte desse pessoal, existe uma Israel mítica, que é aquela coisa do grupo predestinado”, diz. E finaliza: “Judeus são muitos povos, com muitas cabeças, tem o mais religioso, o mais ateu, o mais de esquerda, o mais de direita, porque em parte da comunidade judaica fica parecendo que quem não concorda com eles não é judeu.”
Vamos ver em que país ocorrerá a 34ª edição da Marcha para Jesus, se será uma legítima caminhada religiosa ou, há pouco mais de ano das eleições presidencias de 2026, mais um ato político lamentável de manipuação da fé por religiosos milionários de direita.
- Tarcísio de Freitas, governador e presidenciável, enrolou-se numa bandeira de Israel, ao lado do prefeito prefeito Ricardo Nunes, na marcha em SP, e bancou o religioso diante do que espera sejam seus futuros eleitores. Foto: Roberto Sungi/Estadão Conteúdo.