
A nova economia da solidão: faturando com promessas de cura para a epidemia do isolamento humano

Uma frase emblemática do poeta de Alegrete (RS), Mario Quintana, que não chegou a pegar a tsunami das redes sociais, mas que compreendia profundamente a alma humana: “Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas”. Num mundo superpovoado, onde é impossível não esbarrar em alguém o tempo todo, e com a adição – no duplo sentido – das redes sociais, e seus paradoxos, como pode cada vez mais gente se sentir só, incapaz de estabelecer conexões, cada vez mais presa dentro de si mesma? Ou, como escreveu Lorde Byron, um dos maiores poetas britânicos- pra ficarmos nesse primeiro momento nas poesias -, “há um prazer nas florestas desconhecidas, uma sociedade onde ninguém penetra”. Mas também há dor, carência, isolamento, angústia, depressão, o que gera, como efeito adverso, o que os especialistas chamam hoje de “nova economia da solidão”, onde sobram “coaches” de relacionamentos e terapias heterodoxas e até startups de “companhia por assinatura”: serviços de amigos alugados, chatbots de afeto, avatares personalizados e inteligência artificial que simula relações humanas.
Solidão hoje é reconhecida como epidemia
A solidão é reconhecida até como epidemia – um relatório – leia aqui – de 2023 do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, aponta um aumento drástico no tempo individual, com uma queda nas interações sociais. Já relatório da Comissão sobre Conexão Social da Organização Mundial da Saúde (OMS), recém-lançado – clique aqui – indica que uma em cada seis pessoas no mundo é afetada pela solidão, com impactos significativos na saúde e no bem-estar. A solidão está associada a cerca de 100 mortes a cada hora – mais de 871 mil mortes todos os anos – diz a pesquisa.
A OMS define conexão social como maneiras pelas quais as pessoas se relacionam e interagem entre si. Já a solidão é descrita como sentimento doloroso que surge da lacuna entre as conexões sociais desejadas e as reais, enquanto o isolamento social se refere à falta objetiva de conexões sociais suficientes e, neste caso, em nada se relaciona à prática preventiva recomendada durante a pandemia da covid-19. Ou como resumiu o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, “nesta era em que as possibilidades de conexão são infinitas, cada vez mais pessoas se sentem isoladas e solitárias”. A estimativa é que a condição afete uma em cada três pessoas idosas e um em cada quatro adolescentes.
Daí surgem alternativas “modernas”, como plataformas, quase sempre com o uso de Inteligência Artificial (IA), que começam a preencher precariamente papeis que eram tradicionalmente reservados aos humanos, incluindo os de amigos, confidentes e até mesmo parceiros românticos. Replika é um dos exemplos mais conhecidos cujo slogan, sem meias palavras, é “O companheiro de IA que se importa. Sempre aqui para ouvir e conversar. Sempre ao seu lado”. É um chatbot de IA projetado para fornecer suporte emocional. Os usuários interagem por meio de conversas de texto, e a IA aprende com o tempo a fornecer respostas mais personalizadas, simulando uma conexão – numa espécie de terceirização virtual do afeto.

Outro exemplo é o Gatebox. Eles levaram o conceito um passo adiante ao criar um companheiro de IA holográfico. Destinado a pessoas que moram sozinhas, o avatar de IA do Gatebox pode enviar mensagens ao longo do dia, dar boas-vindas aos usuários em casa e até mesmo controlar eletrodomésticos inteligentes, criando uma sensação de presença e companheirismo- uma sofisticação, em IA, da assistente virtual Alexa. Há novas formas de consumo e interação que emergem deste contexto, especialmente em países onde as companhias virtuais já são consideravalmente difundidas, como é o caso do Japão.

Mais controverso é o Harmony da RealDoll. O Harmony combina IA com um robô humanoide realista para oferecer uma companhia romântica e física. A boneca robótica com inteligência artificial apresenta um sistema de cabeça modular com múltiplos pontos de atuação, que permite formar expressões, mover a cabeça e falar com você. Os olhos também podem se mover e piscar. É possível até controlar a voz do seu robô. O Harmony pode manter conversas, lembrar preferências do usuário e expressar vários traços de personalidade. Esses sistemas de IA fornecem um espaço sem julgamentos para as pessoas se expressarem. O efeito colateral pode ser levar a um maior isolamento social, pois os indivíduos podem preferir a natureza descomplicada dos companheiros de IA em vez da dinâmica mais desafiadora dos relacionamentos humanos.

Ficção “Her” mostrava, há doze anos, homem apaixonado por seu sistema operacional IA
Plataformas como essas inspiraram o romance de ficção científica de 2013 “Her”, escrito e dirigido por Spike Jonze, com Joaquim Phoenix, que se apaixona por um sofisticado e personalizado sistema operacional de IA chamado Samantha (dublado por Scarlet Johansson). À medida que as necessidades e os desejos dela crescem, em paralelo aos dele, a amizade se aprofunda e se transforma em um eventual amor mútuo. Doze anos atrás, esse personagem parecia mais uma ideia abstrata, uma viagem do diretor. Hoje, o Vale do Silício garante essa realidade.

Com outra proposta, a “startup social” 222 (o nome homenageia o endereço em Los Angeles onde a ideia foi concebida), lançada em 2021 por um trio de amigos californianos – Keyan Kazemian, Arman Roshannai e Danial Hashemi –, mas já ampliada para Nova York depois da entrada de investidores, criou uma espécie de “cupido artificial”, que promete se distinguir dos modelos tradicionais de aplicativos de relacionamento, com a proposta de “programar o acaso” por meio de inteligência artificial. Tudo pago, claro, em planos mensais, trimestrais ou anuais. O primeiro encontro pode reunir pessoas em uma chamada do Zoom e depois evolui para jantares presenciais. “É tudo sobre a magia do quintal”, diz o site. Depois do “222”, muitas outras plataformas foram criadas prometendo desde “blind dates” de um casal até “meetings”, buscando ultrapassar a alternativa de ferramentas de encontros como Bumble, primeiro aplicativo desse formato, trazendo paqueras, amizades e contatos profissionais em uma única plataforma.

Jantares com desconhecidos para novos relacionametos, ou o que for combinado, com a promessa de serem mais assertivos, com o uso de IA, passaram a pipocar, caso da Timeleft, que reúne cinco desconhecidos em um jantar. No Brasil, o app tem mais de 30 mil usuários inscritos, segundo seus criadores. A We Met IRL organiza “eventos de speed dating”, como chamam – Bauman defende a tese de que vivemos tempos de “relações líquidas”, passageiras -, encontros para solteiros, e tem feito sucesso em Nova York e outras cidades, com noites temáticas com foco em uma geração “cansada em deslizar para a dieita” – usuarios de Tinder, Happn e outros entenderão.

O Lunge Run Club criou até um “clube de corrida” para solteiros, onde todos os descompromissados se vestem de preto. Quem está comprometido, vai de roupa colorida. Foi fundado pelo Lunge, um aplicativo de namoro que prioriza conectar solteiros em vez de deslizar o dedo sem parar. Rachael Lansing, uma das organizadoras do clube em Nova York, diz que os apps de namoro ficaram no passado e que o Lunge oferece uma plataforma para se conectar com outras pessoas nos mesmos locais de exercícios. “Comparado a outros clubes , o Lunge Run Club elimina a ilusão de esperar conhecer alguém. Em vez disso, permitimos que as pessoas se exponham”, diz ela, no site do grupo.

“Amigos virtuais” são explorados até pelas big techs
Sites de “amigos artificiais” também ganham espaço, inclusive criados por big techs, como Meta e Google, que passaram a criar personagens por IA para fazer companhia e simular relacionamentos. Líder do segmento, o Character.AI já está entre os cem sites mais buscados no Brasil. O também popular Polybuzz cobra R$ 50 ao mês para oferecer acesso a personagens que flertam mais — com uso ilimitado de voz, já está entre os 30 aplicativos de entretenimento mais rentáveis dos Estados Unidos e do Brasil, de acordo com o monitor de audiência em celulares Sensor Tower. Vídeos no TikTok mostram como jovens engatam desde amizades até relacionamentos amorosos com os personagens, que também podem ter aparência e personalidade definidos por instruções do usuário. Especialistas alertam para os riscos de desenvolver sentimentos por bots de IA.

Outros apps como Chai e Emochi têm ganhado popularidade por serem mais liberais em relação ao conteúdo do bate-papo, e a Meta já fez testes oferecendo a possibilidade de conversar com personagens de IA baseados em celebridades. O Google ainda não estreou no meio, mas contratou os fundadores da Character.AI. “Criaram uma tecnologia [as redes sociais] que no princípio pretendia aumentar os laços entre as pessoas, e, na verdade, ela vai se mostrando cada vez mais uma tentativa de substituir os laços”, afirmou a psicanalista Vera Iaconelli, em artigo recente.
Economia do toque: sessões de abraço pagas ou no pacote de funerárias
Portais de “terapia” e leigos “vendem” ou incluem no “pacote” a chamada “terapia do abraço”: não confunda com os “free hugs” de almas caridosas. Estava criado o negócio dos “abraçadores” profissionais, que oferecem carinho por um farto custo por hora. É o caso da britânica Kristiina Link, que se define como uma “aconchegadora e defensora do toque e da saúde holística”. Ela não é psicóloga ou qualquer outra concepção mais tradicional de terapeuta, mas diz fazer parte da Cuddle Professionals International” – lotado de “abraçadores”. Entre os clientes, pressoas que precisam de apoio para se sentirem menos solitários e também quem estejam em um relacionamento, mas tem, supostamente, bloqueio para contato físico. Nenhum “abraçador” faz trabalho filantrópico. Segundo o The Sun, Link diz ganhar £ 170 por sessão (o equivalente R$ 1.250) abraçando estranhos.

Um caso particularmente curioso, que merece ser narrado – e liguei apra Curitiba pra confirmar se não era fake news: uma funerária chamada Vaticano, na capital do Paraná, com “atendimento humanizado”, oferece durante as cerimônias de velório e cremação, “sem custos adicionais” – embora um velório e cremação custe, em média, R$ 6 mil -, dois ursos gigantes, Tina e Théo, como uma forma de terapia do abraço. Esses objetos ficam à disposição para a pessoa enlutada abraçar e extravasar suas emoções.
Há o notório caso da terapeuta polonesa Aleksandra Kasperek, que decidiu investir no mercado das sessões de abraços e faz sucesso ao cobrar R$ 222 para abraçar pessoas solitárias. A terapeuta cobra 149 zlotys poloneses (cerca de R$ 222) para abraçar pessoas solitárias – isso em Katowice, interior da Polônia. Caro? O negócio fez tanto sucesso que tem lista de espera. De acordo com a polonesa, a maioria dos clientes são homens carentes com idade entre 40 e 60 anos. No entanto, mulheres também costumam frequentar seu salão, batizado de Ania Od Przytulania (ou “Ania do Abraço”, em tradução literal). Tanto ela como os clientes ficam de roupão, e bebidas são permitidas para deixar o clima mais relaxado. Também tem um uso na parada.

Animais de estimação
É evidente que o sentimento crescente de solidão — intensificado por mudanças culturais, trabalho remoto, urbanização e envelhecimento populacional — está sendo explorado como nicho de mercado e de controle social. Mas talvez o mais inocente -e mais generoso – seja o boom dos pets como substitutos de vínculos humanos — e o mercado bilionário em torno disso. Estudo do Human Animal Bond Research Institute (HABRI) nos Estados Unidos, revelou que 74% dos tutores de animais relataram melhorias significativas em sua saúde mental, atribuídas à estreita relação com seus pets. O que explica, de certa forma, a normalização de lugares “pet friendly”, inclusive shoppings chics. O fato é que, para muita gente, especialmente os mais idosos, animais de estimação podem desempenhar um papel importante no crescente problema entre adultos: a solidão – desde que não o isolem da convivência humana. O Human Animal Bond Research Institute (HABRI) e a Mars Petcare, que atende às necessidades nutricionais dos animais, convocaram uma conferência sobre a relação entre o isolamento social e os pets para abordar essa questão em particular.

É claro que é preciso, como tudo na vida, saber lidar com perdas. A expectativa de vida de cães domésticos varia de 10 a 15 anos, considerando fatores como raça – ele, portanto, deve ir antes de você. O mesmo para gatos domésticos, outro pet preferencial, vivem, em média, de 12 a 16 anos. Com os cuidados adequados, podem viver mais de 20 anos. O betta, espécie de peixe originária da Ásia, pode viver em média 5 anos. Os meus duraram poucos meses – acho que exagerava, de boa fé, na ração em bolinhas. Por outro lado, uma tartaruga doméstica chega a viver, em média, 30 anos – as tartarugas nativas ficam cenenárias, mas você não vai querer criar uma na piscina de casa.
Para resumir, estudos científicos reafirmam os benefícios para a saúde das interações homem-animal. Eles também podem facilitar interações com outros seres humanos. Não nego que quando adotei meu primeiro cachorro de estimação – uma bizarra mistura de pitbull, a fêmea, com poodle, o macho – tinha em mente me ajudar a conhecer mais mulheres. Funcionou durante um tempo.
Créditos das imagens acima. Imagem de abertura gerada em IA.
(Atualizado domingo, 06/07, 14h15)