Comprar ou não comprar a vacina, eis a falsa questão

6 de janeiro de 2021, 19:44


A vacina contra a Covid-19 é um bem coletivo a ser oferecido a todos, como manda a saúde pública brasileira. O acesso deve ser integral, universal e gratuito.

Está certo. Mas quem vai convencer os fascistas que ocupam o poder no Brasil? Quem vai obrigá-los a cumprir o que manda o SUS e a Constituição, se esse é o país em que elogiam torturadores?

E assim, como não temos vacina, vamos nos dedicar ao que temos. E o que temos é o debate. E o debate agora é o da vacina que poderá ou não ser vendida por laboratórios, clínicas e farmácias.

Começando pelo óbvio, Ministério Público, Justiça e o Congresso deveriam obrigar Bolsonaro a assegurar a todos o direito à vacina gratuita. É esperado que, além das instituições, as pessoas também lutem para que tenham acesso à vacina. Assim funciona a democracia, por mais precária que seja. 

Também é previsível que as empresas queiram lucrar vendendo a vacina, como já fazem com outros produtos e serviços essenciais ou complementares em todas as áreas da saúde.

E não surpreende que Bolsonaro pretenda transferir parte dos custos da vacinação para a classe média, livrando o governo de assegurar vacina a todos.

Os impasses e os dilemas começam aqui: é justo, é razoável, é legal e ético que o mercado se aproprie de parte das vacinas e tire proveito da sabotagem comandada por Bolsonaro?

Essa não é uma situação qualquer. A pandemia criou uma realidade única. Parâmetros consagrados, que funcionam em outras circunstâncias, não são suficientes para a compreensão do momento e talvez não ajudem na tomada de decisões.

O Brasil deveria estar em guerra contra o coronavírus. Mas o governo não está, as instituições não estão e o povo também não. Quem está mesmo na frente de batalha da guerra da pandemia são os profissionais da saúde que morrem para salvar os outros.

Nesse cenário em que poucos guerreiam de fato, o futuro anunciado mexe com dúvidas incômodas. Se a vacina paga for oferecida, quem irá comprá-la sem sofrimento moral entre a minoria com dinheiro para vacinar toda a família?

E quem, em nome do interesse público e de um gesto político, irá se negar a adquirir a vacina da rede privada, como ato político de apoio à maioria, mesmo tendo dinheiro para imunizar todos os familiares? Se não tem vacina para todos, não deve ter para ninguém?

Quem, em nome da família e dos interesses do povo, irá se negar a aceitar a vacina das empresas privadas, se o povo está resignado, amortecido e anestesiado pelo bolsonarismo?

São perguntas de questões urgentes que as esquerdas escamoteiam. A acomodação geral em relação não só à pandemia, mas a todos os crimes cometidos por Bolsonaro, é o drama brasileiro hoje.

Cidadãos de classe média categóricos na condenação da vacina privada, mas que de alguma forma sempre furaram filas da saúde com seus planos privados, sabem que a situação é complicada.

Bolsonaro e os militares não querem a vacinação em massa (ou os militares querem e estão quietos?), as instituições são incapazes de enquadrar Bolsonaro, e o povo não tem forças para reagir a mais nada.

Tudo isso pode ser provisório, e em algum momento o povo pode exigir seus direitos. Claro que pode e já a partir de amanhã.  Mas a ditadura brasileira foi provisória por mais de duas décadas. Bolsonaro é uma aberração provisória inventada pela direita e já está em campanha pela reeleição.

Sua marca como provisório é a incapacidade de governar um país que ele considera quebrado. É mais do que o seu apelo, é o seu irresistível charme como incompetente e genocida.

Comprar ou não a vacina, nesse contexto, parece um debate relevante, mas é hoje uma falsa questão de fundo, num país em que tudo na área da saúde é vendido e comprado.

O dilema incontornável é que o Brasil está sem resistências contra o fascismo desde o golpe de 2016. O dilema que nos imobiliza e nos acovarda é a nossa incapacidade de exigir a vacina, o emprego, a democracia e ao menos um pedaço dos sonhos que a extrema direita transformou em pesadelos.

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Escrito por:

Moisés Mendes é jornalista de Porto Alegre e escreve no blogdomoisesmendes. É autor de ‘Todos querem ser Mujica’ (Editora Diadorim). Foi editor de economia, editor especial e colunista de Zero Hora.

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