Lula 3, a revolução vitoriosa e silenciada na direita e na “esquerda”

16 de junho de 2025, 16:36

É um exercício que exige alguma filosofia explicar a razão ou a desrazão pela qual uma gestão econômica – e política – tão exitosa como a deste terceiro mandato do presidente Lula é recebida com o esperado mau humor pela direita mas também por uma parte dos progressistas.

Não deixa de ser apenas óbvio que uma revolução – sim, revolução – seja recebida assim pela direita. Parcela da esquerda, porém, talvez até majoritária, adota uma atitude de menosprezo ou negação diante dos feitos verdadeiramente admiráveis deste terceiro mandato.

O governo Lula é assim desdenhado justamente porque é uma revolução. Sim, uma revolução recalcada, negada, indigna de reconhecimento – por mais evidentes que sejam suas conquistas.

De novo, mas em outras palavras, o que aconteceu com a eleição de Lula em outubro de 2022 foi uma revolução, ou seja, uma inversão de classes e frações de classes no comando do aparelho de Estado.

Sob criminosa resistência foram retiradas da hegemonia sobre o Estado as frações políticas mais ligadas ao grande capital financeiro e agrário.

Com o advento de Lula 3, a hegemonia da aliança política no controle do poder passou a ser exercida por representantes dos interesses dos trabalhadores da cidade e do campo, dos mais pobres, dos intelectuais, do Estado, das frações médias de menor renda e desprivilegiados beneficiários dos investimentos estatais em saúde, educação e outros muitos programas sociais.

A essa revolução não faltou, como o país tem testemunhado em detalhes no julgamento do golpe, nem mesmo a componente do enfrentamento militar, armado, elemento tão valorizado nas receitas dos radicais de manual.

Que a mídia do capital enxergue essa revolução com olhos de ódio era de se esperar, funcionários que são dos interesses dos super ricos, empenhados em vergastar no lombo dos pobres a carga do mecanismo econômico que sequestra os rendimentos do trabalho.

Ocorre que mesmo parcela importante dos progressistas, porém, embriagados pelo “algoritmo do derrotismo”, insiste desde a transição e o primeiro dia de 2023, em caracterizar Lula como chefe de um governo sitiado, cada vez mais servil e inapelavelmente de joelhos diante dos representantes das elites no Congresso e dos rentistas da Faria Lima.

Os dois campos, a direita eternamente golpista e a parcela negacionista da esquerda, não estão organicamente conectados, mas ideologicamente, de maneira nem sempre sutil, sim. Análises de ambos os campos frequentemente se superpõem na essência. Avaliações coincidem, fluindo da direita para emoldurar os diagnósticos de sua contraparte progressista.

À esquerda, predominam as acusações de que Lula comanda uma gestão encurralada, mantida nas cordas e repleta de traidores escolhidos por Lula. Este estaria rendido, numa situação de contínuo assédio, em um ambiente político geral caracterizado pela sensação inabalável de, desde o primeiro momento do mandato, iminente colapso.

Apesar de conhecido, ele não se trata de um diagnóstico desinteressado na origem. Ele próprio obedece a interesses no quadro da disputa política entre o governo Lula e seus opositores.

Abatidos pela ideologia do inimigo, alguns que professam simpatia por Lula fazem de tudo com os sucessos de seu governo, menos incorporar a suas análises a grandiosidade das conquistas e suas consequências políticas. Alguns gênios chegam ao ponto de sugerir a mais alta e brilhante celebração do fracasso: a desistência Lula antes da eleição do ano que vem, em que ele simplesmente aparece como a melhor chance para manter as mudanças e evitar a volta da contrarrevolução.

Naquele outubro de 2022, ocorreu um feito da maior relevância, o retorno de Lula (pela terceira vez neste século) e do Partido dos Trabalhadores (pela quinta!) ao poder, no ápice de uma sucessão de conjunturas pendulares e alternativas históricas estonteantes que incluíram o golpe contra Dilma Rousseff, a perseguição judicial e a prisão de Lula por 580 dias na masmorra de Curitiba, seguidos por uma reviravolta no STF, a reabilitação jurídica de Lula e a vitória eleitoral contra o fascismo.

O triunfo mereceu da direita desde o instante inicial a mais completa operação de apagamento em meio a todo tipo de relativizações.

A maior derrota mundial da extrema direita naquele momento, aquela que ejetou do poder o incumbente mais tosco e corruptor que já existiu, foi submetida a um ataque redutor inclemente na cozinha venenosa da mídia hegemônica, da Faria Lima e das casas legislativas.

A volta de Lula, na verdade, foi um assombroso fenômeno político. A força de convicção dos eleitores brasileiros, submetidos a todo tipo de campanha de acusação caluniosa contra Lula, superou qualquer expectativa. Representou uma profunda decepção e um atestado de falência para a mídia hegemônica e sua maior aliada e beneficiada ao final de uma prolongada campanha difamatória, a extrema direita. Lula vencedor é um pesadelo continuado para os derrotados de todas as confissões.

Fascistas, tucanos, terceira via e seus propagandistas se unem nessa operação para degradar a revolução em curso, contando para isso com a colaboração em geral involuntária de alguns comentadores “de esquerda”.

Nessa operação de neutralização de triunfos tão transcendentes utilizam-se recursos conhecidos para fazer pouco, para negar a relevância da vitória, ou seja, da, repita-se, revolução que foi e ainda é a vitória lulista.

O “argumento” maior é a “pequena” margem da vantagem de Lula em relação a Bolsonaro. O segundo diz respeito ao tamanho relativamente reduzido da bancada de esquerda no Congresso. Sobrevêm versões derrotistas exagerando problemas da governabilidade. A fracassada tentativa de golpe de Estado, em lugar de ser vista como vitória da democracia, derrota da extrema direita bolsonarista e afirmação do governo de Lula, deu lugar a lamentações sobre a base exígua ou instável de suporte ao governo no Congresso. A frente ampla aliada a Lula poderia ser saudada como mostra da capacidade política do presidente em condições adversas, mas ganhou o signo da rendição. A PEC da Transição e o arcabouço fiscal, alicerces da estabilidade econômica tão necessários à transição ameaçada, foram sendo diariamente fustigadas.

Fundou-se um padrão de narrativa que afastou o aspecto principal do evento de origem: a derrota acachapante do incumbente de extrema direita Jair Bolsonaro à frente de um governo que usou todo tipo de expedientes indecorosos para comprar (sem sucesso) com bondades o voto do eleitor enquanto desencadeava um alongado golpe de Estado prenhe de todo tipo de ameaças e de ações envolvendo as Forças Armadas. Essa derrota desclassificante deu-se a despeito de um gasto estimado em R$ 500 bilhões por Bolsonaro, no uso da caneta e na destruição do Estado para comprar votos, o que, afinal, foi rejeitado pela consciência política ímpar do eleitor brasileiro (principalmente pobres, mulheres, nordestinos e jovens). À luz de tudo que teve que enfrentar, a vitória das forças em torno da frente ampla é simplesmente espetacular.

Lula 3 impõe crescimento econômico forte, consumo, emprego e renda recordistas, inflação em queda, com distribuição de renda. A renda do trabalho da população mais pobre do Brasil cresceu 10,7% em 2024, bem maior que o dobro do avanço observado entre os 10% mais ricos (6,7%). Foi uma redução recordista da desigualdade, ocorrida no mesmo sentido de todas as outras iniciativas distributivistas do governo, como a isenção e redução do Imposto de Renda para os mais pobres, a ênfase nos tributos diretos sobre os rendimentos dos especuladores historicamente protegidos pelo Estado e inúmeras outras ações de justiça social. Ações encetadas em meio a inclemente tiroteio da direita na mídia hegemônica e ao jogo de ameaças e chantagens habituais no Congresso, devidamente amplificados para configurar algo como a “derrota certa e definitiva, equivalente à iminente queda, na prática, do governo”. Uma certa ala dos progressistas adere ao coro.

Os repetidos sucessos do governo merecem dela apenas acolhida protocolar, logo sucedida pela ladainha, de que Lula 3 é um “governo capturado”. Muitas revoluções, a maioria delas, acontecem em meio à guerra civil, ao caos político, ao boicote e à debacle econômica. A de Lula faz mudanças para os pobres, taxa os ricos, enquanto estabiliza a moeda, combate a inflação e organiza a economia. Nada disso talvez seja suficiente para evitar que ela siga se desenvolvendo sob o signo do emudecimento mesmo enquanto ressoam suas vitórias. Já virou lugar-comum dizer que os golpes de Estado de agora mudaram, não são mais como os de antigamente. O mesmo deve agora ser dito também sobre as revoluções, como esta, a de Lula 3.

Imagem do pLuiz Inácio Lula da Silva. Foto: Ricardo Stuckert/PR.

Escrito por:

Jornalista, diretor da Casa do Saber, ex-secretário de Redação e ex-ombudman da Folha, ex-ombudsman da Folha e do iG. Knight Fellow da Universidade de Stanford. Doutor em Letras Clássicas pela USP