Jair Bolsonaro e atos golpistas de 8 de Janeiro (Foto: REUTERS)

Do golpe de estado ao panteão da fama

16 de março de 2024, 19:08

Para os que gostam de aferir o humor dentro das casernas, essa sexta (15/03) foi de constrangimento para os da Marinha e do Exército, que se verão na situação de ter ex-comandantes e, ainda, ex-ministros da Defesa, não apenas nos bancos dos réus da Justiça comum, mas encarando processos administrativos que podem resultar em punição das Forças. Uma verdade, no entanto, é inarredável: Jair Bolsonaro chegou ao fim da linha.

 Há juristas considerando a sua prisão para logo, a fim de tirá-lo das ruas, no que classificam de tentativa de uma “terceira fase dos golpes”, ao levantar os seus seguidores contra o atual governo e, até mesmo, influir os governadores com grande potencial radical, como Tarcísio de Freitas (um fascista vocacionado).

Terceira fase, porque se contabiliza uma tentativa de golpe de estado gestada de 5 de julho de 2022 a 30 de dezembro, quando Bolsonaro deixa o país, aparentemente admitindo a derrota, o que se sabe, falso -, e uma segunda, o enfrentamento com participação de terroristas, no dia 8 de janeiro de 2023, a fim de obrigar o governo entrante a chamar uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO). 

Na construção da tentativa de golpe de estado, vieram à tona reuniões organizadas por Bolsonaro ou a mando dele, em que foram apresentadas aos comandantes das três Forças, o uso de “institutos jurídicos” que respaldavam a decretação de um “Estado de Sítio” ou, pensou ele, a alternativa de um “Estado de Defesa”. 

“O Estado de Sítio é um instrumento burocrático e político em que o chefe de Estado – o Presidente da República -, suspende por um período temporário a atuação dos Poderes Legislativo (deputados e senadores) e Judiciário. Trata-se de um recurso emergencial que não pode ser utilizado para fins pessoais ou de disputa pelo poder (como era o caso), mas apenas para agilizar as ações governamentais em períodos de grande urgência e necessidade de eficiência do Estado.” 

No Estado de Sítio é necessário a aprovação com maioria absoluta do Congresso, para interromper os seus trabalhos, e no Judiciário, por 30 dias. O Estado de Defesa avança sobre os direitos de reunião, sigilo de correspondência, de comunicação telefônica e outros, podendo ser implantado para restabelecer a “instabilidade institucional”, apenas em locais restritos.

Repaginando personagens

Nesse cenário, desenha-se a repaginação de dois personagens: o ex-comandante da Aeronáutica, Carlos Almeida Batista Júnior e o ex-comandante do Exército, Marcos Freire Gomes, ambos ouvidos como testemunhas em consequência da Operação Tempus Veritatis, da Polícia Federal (PF), deflagrada em 8 de fevereiro, com objetivo de elucidar “fatos relacionados ao eixo de atuação” na “tentativa de Golpe de Estado e de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito”.

Além de 33 mandados de busca e apreensão, também foram expedidos quatro de prisão. Entre os alvos estava o núcleo duro do entorno de Bolsonaro: o general Walter Braga Netto; o general Augusto Heleno, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; o ex-ministro Anderson Torres; o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto; o almirante Almir Garnier e o assessor, Tercio Arnaud.

No dia 22 de fevereiro, grande parte dos alvos da Operação foram chamados para um depoimento a um só tempo, em salas separadas, na PF. Dos 27 convocados, 13 falaram e 14 ficaram em silêncio. Àquela altura, porém, dois dos mais importantes testemunhos já haviam sido tomados, em dias diferenciados, contrariando a tática seguida até ali, nas investigações, de chamar depoimentos simultâneos, a fim de evitar que combinassem versões. Ademais, os vazamentos até então não aconteciam, pois a Polícia pretendia usá-los para confrontar com a delação do tenente-coronel, Mauro Cid ex-ajudante-de-ordem de Bolsonaro, preenchendo lacunas e confrontando informações. 

No entanto, o brigadeiro Carlos Batista Júnior depôs (respondendo a 250 perguntas), no dia 17 de fevereiro, enquanto Marcos Freire Gomes foi ouvido no dia 02 de março. Separados, portanto, e ninguém pode afiançar que não se falaram entre um depoimento e outro.

Ambos deram declarações que colocaram o ex-presidente nas cordas, segundo juristas em geral e Luiz Eduardo Greenhalgh, em entrevista ao Boa Noite de 15/03 (247), com a autoridade de quem é renomado nos meios jurídicos e tem na sua história os apensos: ex-advogado de presos políticos, ex-deputado federal (PT), ex-expoente da campanha da Anistia. Ambos se ampararam e se preservaram.

Para Greenhalgh, as declarações são fortes e indicam que Bolsonaro deve ser preso, faltando apenas – para que não se dê margem a controvérsias -, fazer o link de um gesto seu entre a tentativa do golpe de estado (que por si já constitui crime) e a intentona de 8 de janeiro. No que apontaram em seus depoimentos, de acordo com Greenhalgh, há elementos que atenuam todo o envolvimento pretérito de ambos, na tentativa de golpe. O que não significa, por certo, que não terão de responder por suas atitudes. 

Até sexta-feira (15/03), os depoimentos estavam sob sigilo. Na semana anterior, coincidentemente, quando fervia a discussão sobre a proibição do presidente Lula à participação de quadros do governo, na passagem dos 60 anos do golpe de 1964, já se via aqui e ali o pipocar de trechos das falas dos dois comandantes à PF. Os amantes das teorias conspiratórias poderiam dizer que se tentava calar um golpe (1964), com o desfecho do outro (2022). Mas, convenhamos, a reação à proibição de Lula foi motivada pelo aniversário do comício da Central (dia 13), apontado como estopim para o golpe que derrubou Jango. Mas que a coincidência era benéfica, lá isso era. 

Golpistas de ontem, heróis de hoje

O almirante Júlio Bierrembach (interventor do porto de Santos no golpe) costumava dizer que ele fez a “revolução de 1964”, e foi fundamental para acabar com ela, quando presidindo o Supremo Tribunal Militar (STM) mandou dar prosseguimento às investigações sobre o atentado ao Riocentro. Aqui, se poderia cogitar que os dois comandantes golpistas – vejam suas redes sociais –, até às vésperas do desfecho teriam salvado a democracia, por um triz, para ficar na analogia.

Deixando de lado a coincidência, os vazamentos foram se intensificando até que O Globo soltou na manhã de sexta e a GloboNews repercutiu, parte substancial do depoimento do brigadeiro Carlos Batista Júnior, atribuindo ao ex-comandante do Exército, Marcos Gomes Freire, o ato “heroico” de ter dado voz de prisão a Bolsonaro, ao vê-lo apresentar-lhes a minuta definitiva do golpe de estado. Gomes não contou isso em seu depoimento, no dia 2 de março. Tampouco a fala teria vindo a público nos fragmentos veiculados antes, de Batista Junior, mas em se tratando da importância dos efeitos dela sobre todo o processo, a omissão virou detalhe.

Estando todos muito felizes com as manchetes advindas da fala do brigadeiro, o que desdobrou em grande repercussão, o ministro do STF, Alexandre de Moraes, tomou a providência de quebrar o sigilo dos demais depoimentos, até então guardados a sete chaves. Porque poderiam subsidiar a defesa de Bolsonaro e os seus, e porque poderia influir nas checagens dos investigadores. 

Claro que Moraes não estava agindo para juntar alhos com bugalhos, mas a “oportunidade” que se delineou pareceu muito oportuna para um personagem até então desaparecido das páginas e telas desde o dia 7 de janeiro: o ministro da Defesa, José Múcio. Quase saltitante, eufórico, mesmo, sentindo-se recuperado do passa-fora que lhe foi dado pelo ex-presidente do PT, Rui Falcão, na festa de José Dirceu, eis ele de novo, reivindicando louros: “Cada vez mais fica comprovada minha tese de que as Forças não tinham nada a ver com isso. Eram algumas pessoas das Forças Armadas que tinham interesse nisso”, disse Múcio ao Globo. Um golaço, ministro! Upa, Upa!

Em seu depoimento à PF, antes de ser escalado para o papel de herói, o general Marcos Freire Gomes revelou que esteve no Alvorada no dia 7 de dezembro de 2022 – depois da vitória de Lula -, a convite do então ministro da defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, sem saber qual era a pauta. Chamado de superior não se recusa. Na ocasião, na biblioteca do palácio, lhe foi apresentada pelo assessor especial da presidência, Filipe Martins (atualmente preso) a minuta de decreto do golpe, com os “considerandos”, que seriam “os fundamentos jurídicos”. Nela se identificava a habitual expressão que caracterizava Bolsonaro: “jogar dentro das quatro linhas”, embora apontasse para o Estado de Sítio com o desfecho do pedido de uma GLO.

Gomes relatou também um segundo encontro, desta vez com Bolsonaro, do qual não se lembra da data. Custa crer que alguém na posição de comandante do EB, não tenha uma agenda ou anotações dos seus compromissos. Ainda mais uma ida ao palácio, para um encontro com o presidente da República, que apresentou aos presentes uma nova versão do documento “em estudo”, com uma decretação de Estado de Defesa e a criação de uma “Comissão de Regularidade Eleitoral”, para apurar o processo das eleições. Teria sido nesta reunião a ameaça de prisão, sobre a insistência de Bolsonaro ao golpe. Ele e Batista Júnior disseram se opor por não ver nela suporte jurídico, enquanto o almirante Almir Garnier colocava tropas à disposição do ex-presidente. 

Nesse mesmo dia, Gomes ficou sabendo que um dos seus subordinados, Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, chefe do Comando de Operações Terrestres, (Coter), havia sido chamado para confabulações com Bolsonaro (em 9 de dezembro de 2022 a tal data que Gomes não anotou), numa flagrante quebra de hierarquia. O comandante contou  que teve uma preocupação, diante do conteúdo apresentado a eles nas reuniões anteriores, e do potencial do Coter de “coordenar o preparo e o emprego das forças terrestres”. 

Theophilo disse que foi lá por ordem do próprio Gomes. Ele desmente e a PF também. O subordinado relatou ter ido ao Palácio do Alvorada três vezes, após o segundo turno das eleições de 2022, todas a pedido do general Freire Gomes, e que em duas oportunidades estava acompanhado dele, o ex-comandante do Exército. Isso tem como a PF checar. E é o que se espera, seja feito. No trecho vazado do depoimento do general, consta: “Indagado sobre qual atitude tomou ao saber da ida do general Theophilo ao Palácio do Alvorada, respondeu que tomou conhecimento, por meio de áudio encaminhado pelo tenente-coronel Mauro Cid, que o então presidente Jair Bolsonaro solicitou a ida do general Theophilo ao Palácio da Alvorada no dia 09/12/2022; que não partiu do depoente a ordem para que o general Theophilo fosse até o Palácio da Alvorada se encontrar com o então presidente; que não tinha ciência do motivo da convocação; que ficou desconfortável com o episódio”.

Ataques por “omissão” e “indecisão”

Por ter se negado a participar de um golpe de Estado, Gomes disse ter sofrido ataques de apoiadores do ex-presidente envolvidos no caso, incluindo o ex-ministro da Defesa, general Braga Netto. Em 14 de dezembro, uma semana após Gomes negar participar do golpe de Estado, Braga Netto trocou mensagens com o militar da reserva, Ailton Gonçalves Moraes Barros, classificando a postura de Gomes como uma “omissão” e uma “indecisão.

Quanto a Estevam Theophilo, depois de ignorá-lo, passar direto e ir conspirar com Bolsonaro, em vez de ser advertido ou mesmo punido pelo seu superior, foi “guardado” no Alto Comando do Exército até novembro de 2023, quando passou para a reserva.

Também Paulo Sérgio de Oliveira, o que vimos gritar no vídeo da reunião de 5 de julho, que o TSE era o “inimigo”, foi apenas tangenciado no depoimento de Baptista Jr. O brigadeiro relatou ter deixado evidente que não toparia participar de nenhum plano golpista, e que não haveria qualquer hipótese de Bolsonaro permanecer no cargo. Contou também que “ouviu” sobre a existência de uma ordem para atrasar a divulgação de um relatório, feito pelo Ministério da Defesa, que atestava a lisura das urnas eletrônicas, nas eleições de 2022.

Tanto ele quanto Gomes reforçam em suas falas a indignação quanto à adesão ao golpe. Porém, não explicam por que voltaram a uma terceira reunião, esta no dia 14 de dezembro, entre os ex-comandantes da Força e o ministro Paulo Sérgio, no ministério. A pauta era de novo a minuta do golpe, agora “mais abrangente”, com a proposta do Estado de Defesa” e a criação da Comissão de Regularidade Eleitoral. Sendo que no dia 1º de novembro, após consulta feita pelo ex-presidente, o então Procurador Geral da República, Bruno Bianco, dera o seu veredicto: as eleições “transcorreram de forma legal”.

Há juristas considerando que a “ameaça de prisão” feita por Gomes a Bolsonaro, testemunhada apenas por Batista Junior, atenua as posturas omissas de Marcos Freire Gomes. Faz-se vista grossa para a recusa do general em passar o comando na data correta, quando teria de prestar continência ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda que a desculpa de ter ido dar assistência à mãe doente, esbarra no fato de que tinha tempo disponível para marcar presença nas reuniões golpistas com Bolsonaro, nessa época.

Aconselha o bom senso não nos apegarmos ao fato de ele ter assinado uma nota defendendo a permanência dos acampamentos, com a desculpa, ora de que Bolsonaro mandou manter, ora de que não houve uma ordem judicial para fazê-lo, quando sabemos que a jurisdição é do quartel.

Por seu próprio depoimento, e o de Batista Junior, fica-se sabendo que ambos levaram as confabulações sobre o golpe ao limite. Basta ver que as reuniões foram até o dia 14 de dezembro, com a minuta sobre a mesa. É de se supor que esses senhores tiveram, de fato, uma participação efetiva até a undécima hora, acreditando no “vai que dá certo…”

 Levaram a aventura até o limite. Porém, tendo em mente um dado da maior importância, para o meio militar:  no dia 30 de outubro, à noite, quem primeiro cumprimentou Lula pela vitória foi o presidente dos EUA, Joe Biden. 

No meio do ano Biden enviou ao Brasil um emissário – o secretário de Defesa -, para dizer que não apoiaria a “virada de mesa” como definiu o general Augusto Heleno. Entre um presidente na mão, e um voando (para Miami), a dupla de militares foi aos poucos perdendo a firmeza em permanecer ao lado de Bolsonaro. Assinaram a nota em defesa dos acampados, frequentaram com assiduidade as reuniões, mas depois do dia 12 de dezembro, o da diplomação, talvez tenham feito cálculos. Havia um presidente juramentado. Afinal, seria conveniente perder os treinamentos no Comando Sul, nos EUA e de toda a interação de que tanto gostam? Melhor não. E aí, muitas conspirações depois, desembarcaram, já com um pé no abismo. O Brasil se contrita e agradece.

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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