
Gaza: as consequências da paz punitiva imperial

4 de outubro de 2025, 13:35
- EM JUNHO DE 1919, o jovem economista John Maynard Keynes (1883-1946) retirou-se indignado da delegação britânica presente em Versalhes, onde desde o fim do ano anterior se negociavam as bases da rendição alemã na I Guerra Mundial. A partir daí, escreveu um pequeno e contundente livro, denominado “As consequências econômicas da paz” (e não da guerra, como seria de se esperar). A repercussão foi enorme e tornou-se um clássico. Para Keynes, a paz punitiva traria consequências terríveis não apenas à Alemanha, como para toda a Europa. “O Tratado desfere um golpe destrutivo em uma concepção que está nas raízes de boa parte da chamada ‘lei internacional’, como até hoje tem sido considerada”, escreveu ele.
- SEGUNDO O AUTOR, o território alemão seria reduzido a leste e oeste, o Exército, a Marinha e a Força Aérea seriam dissolvidos e a responsabilidade alemã pela guerra ficaria expressa em obrigações financeiras impostas e reparações, que incluiam a entrega da maior parte de sua produção de ferro e carvão, a perda de soberania sobre rios internos, a proibição de constituir forças armadas a altura de suas necessidades. As pesadas multas, caso pagas, se estenderiam até 1961. Seu vaticínio é terrível: o Tratado de Versalhes abria a possibilidade de destruir “a civilização e o progresso da nossa geração, qualquer que seja o seu vencedor”.
- DONALD TRUMP E BENJAMIN NETANYAHU impõem agora cláusulas humilhantes para Gaza, em sua “proposta de paz”. Os palestinos devem renunciar a toda e qualquer perspectiva de soberania. A região será governada por um consórcio imperial dividido entre os EUA e Israel, com dirigentes “técnicos” e liderados por uma caricatura do império Britânico chamada Tony Blair.
- O DOCUMENTO ESTABELECE que a região será gerida por um “comitê composto por palestinos qualificados e especialistas internacionais, com supervisão de um novo órgão internacional de transição, o ‘Conselho da Paz’, que será liderado e presidido pelo presidente Donald J. Trump, com outros membros e chefes de Estado a serem anunciados, incluindo o ex-primeiro-ministro Tony Blair. Um século depois, restitui-se como farsa o Mandato Britânico sobre a Palestina (1920-48), que possibilitou a Nakba, a catástrofe colonial e a limpeza ética do sionismo contra a população árabe palestina da região, crime que se acentua nos dias de hoje.
- UM TRAÇO SALTA AOS OLHOS: não existe no texto mediação da ONU ou de algum organismo multilateral criado no pós-II Guerra. Para além da questão estritamente regional, o governo Trump torpedeia o que resta de “ordem internacional” até aqui existente. Da reclamação de bitucas de cigarro a escadas rolantes defeituosas, temas constantes em seu lamentável discurso na Assembleia Geral, ao gesto imperial de avocar para si o comando de tudo, o presidente dos EUA visa compensar pela força bruta a perda acelerada de sua hegemonia global.
- O CINISMO BATE FORTE no seguinte parágrafo: “Muitas propostas de investimento bem pensadas e ideias de desenvolvimento interessantes foram elaboradas por grupos internacionais bem-intencionados e serão consideradas para sintetizar as estruturas de segurança e governança necessárias para atrair e facilitar esses investimentos que criarão empregos, oportunidades e esperança para o futuro de Gaza”.
- O MELHOR COMENTÁRIO a esse escândalo pode ser retirado do livro de Keynes, trocando-se “Alemanha” por “Gaza”: “A Alemanha deixa de ser um povo e um Estado; passa a ser um simples empreendimento comercial, colocada pelos seus credores nas mãos de um administrador de massa falida, sem ter sequer a oportunidade de demonstrar o desejo de cumprir por conta própria as suas obrigações”. (…) A política de reduzir a Alemanha à servidão por toda uma geração; de degradar a vida de milhões de seres humanos, de privar de felicidade uma nação inteira devia ser odiosa e repulsiva”.
- APESAR DE RESSALTAR que “Israel não ocupará e nem anexará Gaza”, as linhas impostas são claras: “Os Estados Unidos trabalharão com parceiros árabes e internacionais para desenvolver uma Força Internacional de Estabilização temporária (ISF, na sigla em inglês) temporária, a ser imediatamente implantada em Gaza. (…) Essa força será a solução de segurança interna de longo prazo”. Teremos aí uma ocupação perene e jamais qualquer arremedo de Estado palestino soberano.
- TRUMP COSTUROU O APOIO com países muçulmanos, como Indonésia, Paquistão, Egito, Turquia, Catar e Arábia Saudita, além da Europa Ocidental, sinal verde do Brasil e declarações moderadas na China e Rússia. O Hamas, vanguarda política e militar palestina, foi colocado contra a parede. Ainda não é totalmente claro se Israel aceitará a proposta tal como está.
- DERROTADO MILITARMENTE e sem alternativas, o partido lançou nota realista e digna, aceitando a imposição imperial, com a seguinte ressalva: “Quanto a outras questões incluídas na proposta do Presidente Trump sobre o futuro da Faixa de Gaza e os direitos inalienáveis do povo palestiniano, estas estão ligadas a uma posição nacional coletiva e em conformidade com as leis e resoluções internacionais relevantes, a serem discutidas no âmbito de um quadro palestiniano nacional abrangente, no qual o Hamas será incluído e contribuirá com total responsabilidade”.
- É ALGO QUE REMETE À DECLARAÇÃO do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, quando comandou um fracassado levante militar em fevereiro de 1992 para tomar o poder na Venezuela. Derrotado e preso, fez uma curta declaração de rendição, que terminava com a frase “Por ahora” (“por enquanto”).
- PARA A POPULAÇÃO DE GAZA, massacrada militarmente e assassinada e mutilada por tiros, bombas e fome a partir do sadismo sionista, qualquer saída é melhor que a continuidade do genocídio. Mas nenhuma tensão letal será solucionada enquanto o sionismo seguir existindo.
– Imagem gerda em IA