O atalho do governador Ibaneis

10 de outubro de 2025, 09:56

Seria estranho que uma pessoa entrasse numa UBS e, sob o argumento que a fila de espera era muito grande, sacasse uma seringa do bolso e começasse a administrar remédios tarja preta nos pacientes que aguardavam ser atendidos. Pior ainda se ele não tivesse nenhuma experiência ou formação na área de saúde.

Pois é isto que está ocorrendo nas escolas públicas. Militares com total desconhecimento educacional ingressam na escola não para aprender, mas para ensinar o que não sabem. E não se sentam como auxiliares, mas como gestores das escolas. Usam o argumento de que os diretores concursados ou escolhidos pela comunidade escolar não estão dando conta de suas tarefas.

Este expediente desrespeitoso e grosseiro virou um atalho para grande parte dos governadores, de direita ou centro-esquerda. Para alguns, como uma certificado ideológico que o coloca no clube da direita. Para outros, como uma escolha fácil para acenar para os pais eleitores que é duro quando deve ser e que sua filiação partidária está abaixo de uma suposta obrigação que nunca explica claramente de onde veio e qual é realmente sua fundamentação.

O governador Ibaneis Rocha (MDB) decidiu entrar neste clube. Se possível, como um dos primeiros da fila. Recentemente, prometeu ampliar o projeto das escolas cívico-militares no Distrito Federal, chegando a 40 escolas militarizadas e anunciando a “perspectiva de chegar a 50 unidades”. Atualmente, existem 25 escolas militarizadas no DF, sendo 17 Corpo de Bombeiros e oito, com intervenção da Polícia Militar. A “quartelização das escolas públicas” teve início em 2019.

Os militares invadem as escolas públicas. Cada escola militarizada do DF conta com 20 a 25 militares envolvidos com atividades extracurriculares de disciplina e cidadania ao custo de R$ 200 mil por unidade.

Os resultados até aqui são para lá de duvidosos. Alunos do Centro Educacional 01 do Itapoã denunciaram violência física e psicológica sofridas nesta escola Cívico-Militar.Um dos alunos afirmou que foi obrigado a retirar um piercing que usava, mesmo sofrendo riscos, já que o local ainda não estava cicatrizado. Foram 30 denúncias da mesma natureza que foram recebidas na denúncia enviada ao Ministério Público. Em junho do ano passado a escola já havia sido objeto de denúncias quando um adolescente disse ter sido agredido por um policial depois de chegar atrasado para a aula.

O que é estranho é que qualquer profissional com experiência educacional tem conhecimento das mães quando acredita que seu filho está sendo agredido ou desrespeitado por professores ou administração das escolas. Ficam enfurecidas quando os celulares de seus filhos são retirados durante as aulas. Reação, contudo, incomum em meio aos abusos ocorridos e registrados nas escolas cívico-militares.

Em 2023, uma matéria do Brasil de Fato informava que após quatro anos de implementação da militarização nas escolas públicas do Distrito Federal, os índices que permitem avaliar o desempenho dos alunos ainda não tinham sido apresentados publicamente. No ano seguinte, a Secretaria de Educação passou a ressaltar os resultados do Colégio Militar Tiradentes como a melhor escola pública do DF. A partir daí, divulgaram resultados de aprovação dos pais superiores a 80% devido à segurança, mas não aos resultados de aprendizagem.

Este é o problema central: Educação passou a se confundir com segurança, numa simbiose pouco técnica ou acadêmica. Explico.

Todos os gênios assim classificados por toda sociedade nunca foram exatamente disciplinados. Pelé brilhava nos gramados justamente pelo que fazia de inusitado. Einstein detestava os métodos de ensino repetitivos e autoritários das escolas da sua época, o que gerava atrito com os professores.

Muitos especialistas consagrados aprofundaram o conceito de disciplina, moral e formação educacional. Um deles é o brasileiro Yves de La Taille (USP) que sugere três dimensões de limites: as fronteiras morais que não podem ser ultrapassadas sob pena de causar abalo na convivência e ordem social, os limites a serem transpostos e que chamamos de autossuperação e os limites da intimidade pessoal.

Por esta tese, as escolas cívico-militares não observam dois desses limites: o da autossuperação e o da intimidade. Desrespeitam tais regras de formação de jovens simplesmente porque não estudam o desenvolvimento humano.

Um autor consagrado mundialmente que trata do desenvolvimento moral nas diversas fases da vida humana é Lawrence Kohlberg, piagetiano norte-americano muito estudado em cursos de Direito, Psicologia e Educação. Os estudos e pesquisas deste autor revelaram que nosso desenvolvimento moral se faz em etapas que vão do respeito à norma ou regra por medo da punição (o mais primário e instável), passando pelo respeito às regras por convicção até chegar à noção de justiça (advinda da comparação entre regras ou se colocando no lugar do outro para entender diferenças que precisam ser respeitadas para ocorrer a justiça). Kohlberg percebeu que o primeiro estágio, marcado pelo medo à punição, envolvia presidiários. Muitos deles não superavam esta fase. Já o último estágio era o mais complexo porque exigia autonomia do indivíduo para entender que uma regra justa nem sempre é igual para todos. Chama-se “justiça por equidade”. Se observarmos uma corrida de 400 metros numa olimpíada, perceberemos que os corredores não partem em linha, um ao lado do outro. Para a partida ser justa, o corredor que se posta na raia mais aberta sai na frente dos outros, justamente porque na primeira curva ele percorrerá uma distância maior que aquele da raia mais fechada. Isto é justiça equitativa: regras distintas para equilibrar as diferenças.

Pois bem, as escolas cívico-militares tratam todos como se fossem iguais. E os diferentes são punidos. Isto não é educação, mas instrução. Muitas denúncias citam, inclusive, que o medo e a punição são as armas empregadas para unificar comportamentos. Isto não é educação.

A educadora Diane Ravitch foi responsável por avaliações externas nos EUA, sendo a principal articuladora de testes de avaliação de aprendizagem durante os governos Bush e Clinton. Mais recentemente, escreveu o livro “Vida e Morte do grande sistema escolar americano” em que afirma que os testes de avaliação foram um enorme fracasso em seu país. Os alunos aprenderam como fazer testes, memorizando resultados a partir de repetição de respostas esperadas, mas não desenvolvendo sua inteligência. Inteligência é a capacidade de dar respostas a situações imprevisíveis. Tem relação com autonomia do pensamento. Não com medo ou adestramento.

Em síntese: as escolas cívico-militares podem estar matando futuros gênios brasileiros. Empobrece nossa nação. Não porque os militares sejam profissionais ruins, mas porque não foram formados para educar. Não sabem o que é desenvolvimento humano, não estudam psicologia ou neurologia, não sabem os motivos de um aluno ter dificuldades de aprendizagem, não relacionam traumas ou angústias pessoais com aprendizagem. Nunca leram Piaget, Kohlberg, Wallon, Vygotsky. Nunca estudaram as séries históricas do IBGE dedicadas à educação. Não sabem que as mães são o principal fator de desempenho escolar dos alunos no Brasil.

Enfim, quando escolhemos uma profissão, nos dedicamos a ela, não à outra. Jogador de futebol se dedica nos treinos de futebol, não de natação ou judô. Se desviar muito dos seus treinos específicos, não se desenvolverá como profissional. Militar é formado para impor a ordem. Se necessário, com a força. Educador que fizer isso será denunciado e sofrerá punição, além de ser considerado incompetente para a função.

Cada um em seu lugar e de acordo com sua vocação.

A palavra profissão tem origem em professar, ou seja, aquele que tem fé. Não dará certo um gestor educacional que não tem fé na educação ou que só tem fé na disciplina e na ordem. Este é o dilema de pais e demais cidadãos do DF.

  • Foto: Divulgação/ SSP-DF

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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