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O brasileiro é violento

4 de dezembro de 2025, 09:21

A história do Brasil é uma história de violência. Criou-se um mito conveniente de que somos hospitaleiros e um país pacífico, que nunca entrou em guerra. Ocorre que a proclamação da nossa república ocorreu logo após uma guerra, contra o Paraguai, que acabou alimentando a noção dos militares de que são um poder moderador que precisa se impor pela violência e pela distinção em relação aos outros brasileiros. Esta, contudo, é uma das facetas da violência nacional. A violência institucionalizada. Algo que nos deparamos cotidianamente, com ações das polícias ou pelos desmandos de autoridades públicas.
Há um substrato cultural que legitima esta violência institucional. Trata-se de um processo de educação, principalmente dos homens brasileiros, focada numa honra abstrata e na sua manutenção pela violência pessoal.
O Brasil é campeão mundial de linchamentos: um por dia, segundo levantamento do sociólogo José de Souza Martins.
Estudo recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aponta que jovens negros e pardos representam 73% dos óbitos por causas externas, que incluem homicídios e acidentes violentos. Cerca de 80% dos homens mortos por arma de fogo no Brasil são negros.
Segundo o Observatório do Grupo Gay da Bahia, o número de mortes violentas de pessoas LGBTQIAPN+ no Brasil cresceu 13,2% em 2024, quando comparado com os registros do ano anterior. Foram 291 homicídios e suicídios em 2024, 34 a mais que no ano anterior. SP, BA e MT lideram ranking e Salvador é a capital mais perigosa.
Somos violentos.
Esta é parte da explicação para o aumento de assassinatos de mulheres no Brasil. O perfil do autor de feminicídio em nosso país é majoritariamente de homens com quem a vítima tinha um relacionamento íntimo, como companheiros ou ex-companheiros, que são responsáveis por cerca de 80% dos casos.
Os dados acima indicam, além da misoginia na cultura masculina, uma cultura geral da violência nos microespaços de sociabilidade do Brasil. O Brasil não se envolve em guerras contra outras nações, mas se envolve em guerras cotidianas contra brasileiros próximos de seu olhar e de suas mãos.

Há muitas hipóteses que explicam este pendor violento dos brasileiros. No caso masculino, trata-se de um processo educativo, nas famílias, nos círculos de amizade e até nas escolas. As escolas, por omissão. Nos preocupamos com as taxas do IDEB e ENEM, mas não avaliamos com rigor os comportamentos e a formação dos brasileiros. Tudo se resume ao sucesso individual e à honra pessoal.
Seria possível interagir com esta cultura com políticas educacionais corretas e incentivos de emancipação econômica das mulheres. Sobre a relação da dependência financeira e agressões contra as mulheres, vale registrar que a falta de renda própria faz com que mais de 60% das mulheres não denunciem agressores, segundo estudo de Carolina Afonso, do Tribunal de Justiça do DF e doutoranda da UnB. Já a Pesquisa do Observatório da Mulher contra a Violência, divulgada em novembro de 2024, revelou que 85% das mulheres negras, sem renda e que sofreram violência doméstica acabaram por manter o convívio com seus agressores por não terem para onde ir.
Um financiamento público direto às mulheres para que abram negócios – individuais ou associativos – poderia alterar esta realidade. As mulheres poderiam decidir se permanecem ou não com seus relacionamentos afetivos sem qualquer relação com dependência financeira. Poderia, inclusive, ser uma solução econômica contra as estruturas clientelistas e patriarcais nos grotões do Brasil.
Já a educação é mais complexa.
O antropólogo Juliano Spyer apresenta em seu livro “Povo de Deus” uma tese interessante. O autor sugere que nos registros de sua pesquisa percebeu um percurso das mulheres negras das periferias urbanas através do ingresso nas igrejas evangélicas que contribui para diminuir a violência doméstica, embora se mantenham relações machistas em sua família. O percurso começa com seu ingresso na igreja que a estimula à leitura da Bíblia e à continuação de seus estudos. Somente esta vantagem instrucional já lhe confere uma deferência moral na sua família. Em seguida, a mulher trás para sua casa as regras morais religiosas e a leitura da Bíblia. Esta situação cria um processo sutil de constrangimento para as condutas violentas dos maridos que, aos poucos, se inserem nos rituais cristãos.
Esta sugestão de Spyer leva à reflexão sobre o papel da educação familiar na desmontagem da cultura da violência. Algo que as escolas e faculdades poderiam contribuir sobremaneira em nosso país. Afinal, não se trata de um tema afeto apenas às famílias e igrejas.
Na reforma educacional da Espanha no final do século 20, houve uma imensa preocupação em se estabelecer experiências reflexivas sobre o papel de homens e mulheres. Oficinas em que alunas se envolviam com máquinas e serras considerados trabalhos pesados e masculinos; e alunos se envolviam com limpeza de banheiros e com preparo de refeições, tarefas culturalmente definidas para o público feminino, acabavam sendo temas de rodas de conversa periodicamente. Os alunos relatavam o incômodo e eram estimulados a pensar a respeito. Não temos nenhuma preocupação similar à da Espanha nas escolas e faculdades brasileiras. No máximo, são apresentadas estatísticas ou textos teóricos sobre o machismo e patriarcalismo. Acontece que o processo de aprendizagem se dá por experiências concretas. No jargão sociológico e pedagógico, experiência é vivência refletiva, analisada. Somente vivenciar não gera aprendizagem. É preciso vivenciar e refletir. A isso se dá o nome de experiência.
Ocorre que a educação brasileira tem uma vocação instrucional, nem sempre realmente educativa. Instruir gera memorização de normas e práticas pré-estabelecidas. É o que o piagetiano Lawrence Kohlberg denominou de “orientação por obediência”, ou seja, o instruído não entende a regra, mas a cumpre para não ser punido. Kohlberg sustenta que há um estágio superior a este em que se aceita a regra para obter aprovação social. Embora ainda esteja no campo do egocentrismo, ao menos, neste estágio, o aluno vê a sociedade, para além de si. Mas o que Kohlberg define como o estágio mais avançado do desenvolvimento moral é a orientação por princípios éticos. Neste caso, não há instrução, mas reflexão. O aluno compara regras e analisa as condições de vida para definir o que seria mais justo. Aqui entra a noção de justiça que não aparece nos estágios anteriores.
O fato é que temos que discutir políticas e iniciativas que enfrentem esta cultura da violência instalada no Brasil desde sempre. Uma cultura que instrumentaliza tudo: a natureza, as culturas tradicionais, as pessoas.
No próximo dia 7, em várias capitais, ocorrerão manifestações que fazem parte da Mobilização Nacional Mulheres Vivas. Trata-se de uma ação pacífica que procura dar relevo ao tema da violência contra as mulheres. Este movimento envolve mulheres, mas também homens (se puderem, vejam o impactante vídeo desta campanha intitulado “É problema meu!”).
Se as manifestações conseguirem despertar a atenção para este horror da violência contra mulheres brasileiras, teremos um sinal de que podemos mudar esta cultura nacional. Se levarmos nossos filhos, netos ou se nós, homens, estivermos nessas manifestações, talvez consigamos dizer que não se trata de um problema exclusivamente feminino, mas nacional.
Trata-se de construir um país mais humanizado, uma herança que deixaremos para nossos filhos e netos.

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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