
O erro de Haddad que Ricardo Nunes levou ao limite *

Quando ministro da educação, Fernando Haddad promoveu uma mudança radical na concepção estratégica educacional da esquerda brasileira. Até então, a referência maior era Paulo Freire, seguido de perto pelas contribuições de Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro. Este trio, ladeado pelo liberalismo progressista de Anísio Teixeira, elegia a sociologia da educação como a referência teórica e de leitura dos desafios educacionais brasileiros.
Freire, Florestan, Darcy e Anísio se preocupavam com o lugar da educação frente às mazelas sociais, políticas e históricas do Brasil. Era a leitura sociológica que definia as estratégias educacionais. Nenhum deles falava de uma tipologia de aluno idealizado e orientado por metas quantitativas. Anísio, talvez, seja dos quatro educadores citados o que mais se aproximou de uma idealização de aluno, marcado pela construção de um cidadão ativo e autônomo que John Dewey sustentou.
Haddad ignorou tais contribuições. Trouxe para a estratégia educacional nacional o modelo anglo-saxão, fundado em metas de proficiência em matemática e língua materna formuladas por educadores tayloristas, tendo Joseph Mayer Rice o fundador desta lógica racionalista e gerencialista da educação. O currículo como conjunto de dados irrefutáveis a serem memorizados pelos alunos não era novidade. A novidade é um partido do campo progressista adotar esta referência como seu mote educacional. Ao final, tudo se resumia a reforçar aprendizagens com exercícios de reforço e memorização a ponto da nota dos alunos significar muito pouco sobre ele e muito sobre as técnicas que condicionam respostas esperadas.
O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), a avaliação externa universalizado pela gestão Haddad, pouco ajuda a compreender os motivos que levaram o aluno a responder uma questão. O IDEB não relaciona seu desempenho com sua trajetória de vida. Não há qualquer relação com sua condição de vida, se passa fome ou sofre abusos, se a matemática está inscrita na sua lógica de sobrevivência ao vender doces nas ruas ou se tem acesso a livros em sua residência ou pais que lhe acompanham com dedicação.
Pois bem, este erro de Haddad em desaprender com os mestres da educação brasileira acabou sendo percebido como a ponta de lança da ofensiva educacional da extrema-direita brasileira.
Antes, a Escola Sem Partido sustentou que educação é tarefa da família, sendo que as escolas devem se preocupar com instrução para inserção dos jovens no mercado de trabalho. Em outras palavras, era o que IDEB sugeria sem dizer claramente.
Contudo, a extrema-direita foi além.
Com efeito, a cidade de São Paulo se tornou palco de ofensiva da extrema-direita sobre a educação. O recente anúncio do prefeito Ricardo Nunes que resultou no afastamento de 25 diretores e no ranqueamento das escolas municipais com base em suas notas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), foi mais um capítulo dessa insistência que nada tem de técnico e muito de ideológico.
O governo de Ricardo Nunes decidiu classificar as instituições de ensino em grupos de “melhores” e “piores” e, a partir deste ranking, penalizar os gestores das escolas com piores IDEBs. O efeito imediato é um clima de pânico e insegurança, gerando um mal-estar generalizado na rede municipal de ensino.
Ocorre que se revelou comum que as escolas com os menores índices de desempenho estão situadas em áreas de maior vulnerabilidade social, onde os desafios para a aprendizagem são agravados por fatores externos ao ambiente escolar. São condições que escapam ao controle do gestor e que têm relação direta com desigualdades históricas, não com “má gestão”.
Vincular o IDEB obtido por uma escola com a intervenção da secretaria municipal de educação para substituir gestores escolares por gestão privatizada – a base do discurso de Ricardo Nunes desde o início deste ano – vem alimentando a intenção de professores e gestores pedirem transferência das escolas em que estão alocados. Inclusive, gestores de escolas municipais com alto IDEB, dado que projetam um cerco da secretaria de educação para que mantenha a qualquer custo este índice. A migração de profissionais e, consequentemente, a busca de famílias por escolas com notas superiores, tem o potencial de gerar um desequilíbrio estrutural: o inchaço de instituições classificadas como “melhores” e o esvaziamento das ditas “piores”. Esse movimento não apenas compromete a qualidade do ensino ao sobrecarregar algumas unidades, mas também intensifica a segregação social e aprofunda a desigualdade educacional, pois estigmatiza escolas e, por extensão, as comunidades que as cercam.
Além das implicações estruturais e constitucionais, essa política ameaça um dos pilares fundamentais do processo pedagógico: o vínculo afetivo entre educador e estudante. O possível êxodo de professores das escolas ranqueadas como “piores” impacta diretamente na quebra desse vínculo, gerando um ambiente de instabilidade e incerteza. Para os estudantes que já se encontram em um contexto estigmatizado e, muitas vezes, em áreas vulneráveis, a perda de figuras de referência e o constante rodízio de profissionais causam um sofrimento adicional, reforçando a sensação de desamparo e, lamentavelmente, a percepção de que estão fadados ao fracasso.
Gaslighting ou a tentativa de assédio moral da prefeitura de São Paulo
Há um fenômeno estudado pela psicologia que leva o nome de Gaslighting. Trata-se da manipulação psicológica que tem por objetivo que a vítima deste abuso duvide de sua própria sanidade e competência. Nos estudos clínicos são registrados casos em que crianças são submetidas a abusos e arbitrariedades a ponto de, na vida adulta, se sentirem culpadas e justificarem as críticas obsessivas a que foram submetidas. Um abuso de poder que vai minando a autoconfiança e a imagem de si.
No campo profissional, o gaslighting se aproxima do assédio moral constante, demolidor. Não raro, provoca a desmotivação do profissional, algo que se aproxima de sintomas próximos do pânico. A literatura especializada denomina como burnout, um esgotamento emocional profundo que leva à exaustão, o fogo existencial e profissional que se apaga.
Nas pesquisas que o SINESP, sindicato dos gestores das escolas municipais paulistanas, vem promovendo na rede, emergiram inúmeros depoimentos de professores que afirmam não querer levar no seu currículo a pecha de terem trabalhado em escolas que são expostas publicamente como sinal de fracasso. Muitos desses profissionais possuem currículos de dedicação reconhecida por seus pares e por familiares dos alunos que atendem e atenderam. Muitos obtiveram resultados comprovadamente positivos ao longo de sua trajetória profissional.
Na pesquisa em curso sobre as variáveis que afetam o IDEB das escolas municipais paulistanas, não há qualquer indício que o baixo IDEB se relacione com o desempenho negativo do gestor escolar. As principais variáveis que afetam o índice são o número de alunos de cada unidade escolar e a vulnerabilidade social das famílias dos alunos. As escolas que atendem público mais vulnerável são as que se encontram com problemas estruturais como falta de professores. Ignorar isso é culpar a vítima e absolver o responsável pela formulação de políticas públicas inadequadas.
Se formos rigorosos, o erro pelo baixo IDEB é justamente a falta de estratégia educacional do governo municipal que não garante condições mínimas de trabalho dos educadores municipais em escolas com avaliações baixas e de sobrevivência digna das famílias dos alunos dessas escolas.
Mas, a questão a ser destacada é o mal que este ataque obsessivo da prefeitura aos gestores das escolas municipais vem causando na rede de ensino da capital paulista. A vergonha e o medo causados pelo gaslighting estão forjando um clima de desmontagem do ambiente de trabalho justamente nas escolas que deveriam ter incentivo para superação das dificuldades percebidas.
O cenário descrito insere-se na ânsia de políticos de direita em emplacar determinada racionalidade gerencial no setor educacional. Essa racionalidade implica a transposição de métodos e valores da administração privada para a gestão pública, priorizando a mensuração de resultados e a responsabilização por metas, muitas vezes desconsiderando as condições objetivas em que esses resultados são produzidos.
Vulnerabilidade social e os impactos sobre o desempenho escolar
Em diversas pesquisas que o Instituto Cultiva vem realizando com familiares de alunos de redes públicos em várias localidades do país, as dinâmicas familiares se cruzam com o desempenho escolar. E as dinâmicas familiares se relacionam com nossas mazelas sociais.
Um dos fatores mais agudos e desconsiderados por gestores privatistas como Ricardo Nunes é o adoecimento mental das famílias que impactam diretamente o comportamento e desempenho escolar dos alunos das redes. Em Teresina (PI), mais de 70% das mães pesquisadas apresentaram sintomas de depressão profunda. Em Araraquara (SP), pouco mais de 40% das famílias de alunos apresentavam o mesmo quadro de adoecimento mental que ganhou contornos de alta gravidade a partir da pandemia do Covid19.
Em Contagem (MG), 80% dos alunos considerados muito apáticos pelos professores da rede municipal de ensino apresentavam eles próprios sinais de depressão ou ansiedade crônica ou de seus responsáveis e familiares.
Em municípios da região metropolitana de Natal (RN), o adoecimento mental é citado por 55% das famílias e 23% dos estudantes que apresentam sinais de ansiedade (39% dos pesquisados) e depressão (15%).
Na quase totalidade das situações de adoecimento mental, apenas 30% são atendidos por profissionais da área de saúde mental.
O quadro de adoecimento psíquico é, muitas vezes, acompanhado por violência cotidiana e sinais de fome, principalmente nas regiões urbanas com rede de proteção social menos estruturada. Este é o cenário encontrado na cidade de São Paulo.
A questão que fica é: qual a culpa do gestor escolar e qual o quinhão de culpa dos prefeitos num cenário de descaso social?
A ânsia do extremismo político nacional em privatizar a gestão escolar indica uma superficialidade técnica e conceitual, que expõe estudantes e professores à mercê de um modelo de governo autoritário e punitivo. Sem apuro e acuidade que políticas públicas exigem, principalmente no 7º país mais desigual do planeta, segundo levantamento da ONU.
Se não tem nenhum fundamento técnico, o que leva o prefeito Ricardo Nunes a insistir no afastamento de gestores escolares?
Em ciência, aprendemos que não devemos enquadrar a realidade numa tese ou hipótese inicial. É a realidade que indica se a hipótese é adequada. O prefeito, porém, força sua ideologia sobre a realidade, transformando políticas públicas em instrumento de coerção.
Se um governante insiste em enquadrar sua ideologia ou tese de qualquer maneira numa realidade que não valida sua crença, sua política deixa de ser pública e passa a ser uma imposição autoritária. O que se vê em São Paulo não é avaliação de desempenho, mas uma operação política de intimidação, humilhação e gaslighting, cujo alvo são os diretores comprometidos com a educação pública.
É o que aprendemos quando diferenciamos avaliar de verificar. Ao verificar, procuramos achar a nossa verdade na realidade. Ao contrário, quando avaliamos, aprendemos a valorizar a realidade, a tentar entender as variáveis que contribuem para que ela seja como se apresenta. Ao avaliar, nos tornamos mais humildes. O contrário disso é um olhar caolho, superficial e desconectado do interesse público e social.
O ataque aos diretores paulistanos é, acima de tudo, político. Ricardo Nunes opta por um modelo de gestão que pune e estigmatiza, em vez de apoiar e fortalecer a educação pública, tratando gestores como bodes expiatórios de falhas estruturais que estão fora de seu controle.
Ao insistir na lógica punitiva e privatista, a prefeitura não só compromete a rede municipal de ensino, como ameaça o futuro de milhares de estudantes em áreas vulneráveis.
Não se trata apenas de defender profissionais, mas de proteger a educação pública, o direito à aprendizagem e a dignidade das comunidades que dependem dessas escolas. O momento exige reflexão crítica à instrumentalização política da educação em detrimento da vida e do futuro de crianças e adolescentes paulistanos.
Mais: exige que lideranças políticas do campo progressista tenha mais atenção na coerência e impacto do que empregam quando gestores públicos. Na ânsia de se apresentarem como tecnicamente neutros, resvalam na mudança de perspectiva ideológica que logo mais alimentará ofensivas da direita e de extremistas, como ocorre agora na cidade de São Paulo.
- Imagem gerada em IA inspirada na música, e no clipe, Another brick in the wall, da banda inglesa Pink Floyd, uma crítica contundente ao sistema educacional autoritário e à repressão social.
* Este artigo se baseou no ensaio intitulado “Prefeito de São Paulo coloca em risco toda rede municipal de ensino” escrito por Rudá Ricci, Mariana Martins, Micaela Gluz, Carol Santos e Juliana Meato.