O Projeto da extrema-direita dos EUA

31 de agosto de 2025, 10:40

Acabo de ler “O Projeto”, de David Graham, jornalista do Atlantic, dos EUA. Graham dissecou o documento “Projeto 2025”, elaborado por extremistas alojados na Heritage Foudation, tendo à frente os ultraconservadores Russel Vought e Paul Dans.

Grande parte dos colaboradores na elaboração deste documento forma nomeados para o segundo escalão do atual governo Trump.

O livro é fácil de ler, com apenas 155 páginas, e descreve ações para destruir a estrutura básica da gestão pública moderna. Declaram explicitamente a politização de todos os órgãos de Estado, a extinção de muitos deles – principalmente vinculados às políticas sociais – e a redução drástica do número de funcionários de carreira e aumento das indicações políticas.

Seus autores fazem uma miscelânea entre cristianismo e nacionalismo, entre reacionarismo e defesa dos trabalhadores, entre oposição frontal à cultura “woke” e o ataque aos carros elétricos porque querem conter a China e a dependência das terras raras.

Esse pessoal se preparou durante a gestão Biden. Vought e Dans se uniram a Kevin Roberts, este último historiador e presidente da Heritage Foundation. É dele a síntese do Projeto 2025: restaurar a família como espinha dorsal da vida americana, desmantelar o Estado, defender a soberania nacional e garantir os direitos individuais.

Embora Trump tenha algumas diferenças com o Projeto 2025, seu vice, James Vance é muito próximo de Roberts. O interesse da Heritage é compor os quadros em agências estratégicas do governo Trump e projetar uma estratégia que vai além do governo atual. A primeira parte já conseguiram. A lista de colaboradores no comando de agências centrais da política de Trump impressiona: Tom Homan (comando das fronteiras), John Ratcliffe (diretor da CIA), Brendam Carr (presidente da Comissão Federal de Comunicações), Paul Atkins (presidente da Comissão de Valores Monetários), Peter Navarro (conselheiro sênior, responsável pela atual política tarifária que nos atinge), Michael Anton (diretor de planejamento de políticas do Departamento de Estado), Russell Vought (chefe do poderoso escritório de Gestão e Orçamento, o OMB).

Graham descreve o Projeto 2025 como um “minucioso esquema de execução”, tendo como protótipo as diretrizes que a fundação elaborou a posse de Ronald Reagan.

O que há de comum nesta linha de “esquema de execução” é o enfrentamento da burocracia pública, denominada como quarto poder pelos autores do Projeto. Sugerem identificar os bolsões de independência e enfrentá-los, um a um. As metas são: encontrar indicados políticos que sejam mais ideologicamente vinculados ao Projeto, converter mais cargos em nomeações políticas e implantar táticas de terror para forças servidores públicos a obedecerem ao comando central ou se afastarem das funções.

Desde antes da posse de Trump, a fundação Hermitage produziu 30 cursos online com vídeos de 39 minutos de duração para treinar lideranças ultraconservadoras recrutadas pelo enfrentamento de gestores democratas, incluindo até mesmo mães que rejeitaram currículos focados em direitos sociais.
Um dos mecanismos para cercar funcionários de carreira e agências estatais identificadas como hostis é o bloqueio de verbas. Para tanto, orientam pela fim da Lei de Controle do Bloqueio de Verbas. Os autores do Projeto afirmam que o governo federal dos EUA emprega 2 milhões de pessoas e mais 20 milhões de contratados.

O Departamento de Justiça (DOJ) se projeta como um aríete nesta ofensiva. Este ministério já tem fama de defender de maneira amoral as empresas dos EUA contra empresas estrangeiras e até mesmo 46% dos norte-americanos acreditam que é “político demais, corrupto e indigno de confiança” segundo pesquisa nacional recente. O Projeto 2025 quer o FBI e este Departamento investigando pessoas que se revelarem opositores dos projetos governamentais.
Vou destacar algumas orientações gerais e políticas setoriais que aparecem no Projeto 2025 e que saltam aos olhos como um novo anúncio do Apocalipse.

  1. Defesa da família: a posição é tão radical que vai da proibição do aborto à rejeição de vacinas contra a Covid 19 por usarem linhagens de células de fetos. O paladino desta frente é Roger Severino, advogado fanático que passou pelo Departamento de Justiça no governo Obama e chefiou o Escritório de Direitos Civis no governo Trump. Severino tem como alvo Estados democratas que se tornaram “turismo do aborto” por apresentarem legislação estadual mais flexível. Defende o voucher para pais para cuidarem das crianças e é contra a creche universalizada como direito;

  2. Educação: aqui vale a ideia-força do cristianismo extremista norte-americano que a Escola Sem Partido copiou de cabo a rabo. As famílias teriam o direito de determinar o que os filhos aprendem, como aprendem e onde aprendem. O Projeto 2025 sustenta a criação de oportunidades educacionais fora do sistema de escolas públicas que estariam dominadas pela cultura woke (mais um dos tantos delírios dos extremistas). Aqui entram os cheques-educação ou vouchers para os pais ou contas de poupança para pagamento de escolas religiosas ou instituições privadas de ensino. No Brasil, o delírio vai da defesa do homeschooling acoplada a pacotes EAD produzidos por grandes empresas e fundações privadas. Severino e Lindsey Burke – a diretora de política educacional da fundação Hermitage – defendem o fim do Ministério da Educação de uma vez por todas e empréstimos governamentais para o setor privado;

  3. Apoio controlado às comunidades locais: os ultraconservadores afirmam que historicamente as comunidades locais sabem melhor do que qualquer instância de governo como governar a si mesmas. Tem certa correspondência com a defesa das emendas parlamentares aqui no Brasil: os deputados conheceriam melhor as demandas locais. Sugerem que as políticas educacionais e de saúde poderiam ser administradas nas localidades. Contudo, querem controle central sobre as polícias locais;

  4. Economia e Comércio: aqui, os extremistas e trumpistas divergem entre protecionismo e desregulamentação comercial. Também divergem sobre as bigtechs, sendo que uma ala as atacam por se relacionarem com a China, mas Trump fez vários acordos com elas (gerando farto financiamento em sua última campanha). Peter Navarro é figura central e faz a ponte entre as diversas alas. É dele que vem a defesa radical às tarifas baseado no reequilíbrio da balança comercial dos EUA. No fundo, a preocupação central de Navarro é a China. Quer tarifas tão altas que inibirão o consumo dos produtos chineses. O Projeto 2025 sugere, ainda, a revogação de partes da Lei Dodd-Frank, aumentando as liberdades para empresas agirem. Há guerra declarada contra políticas de defesa dos consumidores e defendem a liberação de empréstimos e créditos consignados;

  5. Trabalho: este é um ponto que parte da esquerda ainda não compreendeu no discurso da extrema-direita contemporânea. Se de um lado são contra o sindicalismo, de outro, defendem o emprego como base do equilíbrio familiar. Esta é a posição do vice-presidente e de Jonathan Berry, hoje no Departamento do Trabalho. Berry defende o direito à sindicalização e punição a quem demite sindicalizados. Contudo, defende a restrição das atividades sindicais, exige a votação formal para sindicalização e sustenta a fiscalização de sindicatos mesmo sem queixa formal. Berry sustenta a flexibilização da proibição de trabalho de adolescentes e rejeita o enquadramento de trabalhadores da economia informal como empregados.

Esta é a plataforma que orienta as ações do governo Trump, nem todas apoiadas diretamente por ele. Contudo, o Projeto 2025 não é um mero projeto do atual governo. É um projeto da extrema-direita que procura se instalar no Estado – e já conseguiu o feito – e impor uma nova lógica que debela por dentro as bases da institucionalidade pública dos EUA.

Trata-se de uma plataforma extremista de gestão pública. Merece nossa atenção porque pode ser a base estratégica de extremistas brasileiros. Alguns pontos já estão sendo postas em prática por Ricardo Nunes, na cidade de São Paulo. Alguns governos estaduais também seguem ao menos uma filosofia próxima. Este é o caso de Tarcísio de Freitas, o czar do extremismo sapatênis brasileiro.

  • Capa do livro “O Projeto”, de David Ah. Graham, best-seller do New York Times, que demonstra como a transformação que a extrema direita está promovendo nos Estados Unidos é resultado de um plano de ação abrangente.

Escrito por:

Rudá Ricci, sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais. Ex-consultor da ONU e presidente do Instituto Cultiva. Autor, dentre outros livros, de "Desafios do Educador" (Editora Letramento) e "Fascismo Brasileiro" (Editora Kotter)

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