(Foto: ABR | Assessoria parlamentar)

Pintou um clima

20 de outubro de 2022, 16:15

“Pintou um clima” num velhote tarado e ele abusou dessas duas meninas da foto, de 6 e 7 anos, deixadas sós enquanto a mãe saiu para procurar emprego…

Muitas mulheres já me relataram abusos sofridos na infância. Uma amiga de minha mãe, no leito de morte, confidenciou-me, fazendo-me prometer não contar pra ninguém, nem à sua filha, que quando menina foi abusada pelo marido rico de sua mãe. Abriu-me seu coração e partiu aliviada do peso de seu segredo, como se fosse dela a culpa por ter “pintado um clima” no padrasto abusador.

Ouvi de uma mulher mais jovem o relato de um pai que lhe fazia carícias sexuais, e ela até hoje enfrenta o trauma de ter causado o “clima” que “pintou” em seu pai.

Quando precisou trabalhar, minha mãe, bem relacionada no governo JK, tinha a possibilidade de conseguir um emprego público. Nunca quis, para não se afastar dos três filhos, sendo duas meninas. Ela se profissionalizou na costura, que já era seu dom, trabalhando em casa.

Mamãe se multiplicava em muitas, costurando, atendendo à clientela e dirigindo seu fusca, para lá e para cá, para levar suas meninas, e também buscar, nos cursos de inglês, francês, dança, teatro, o que fosse. Não sei como conseguia, mas conseguia.

Começamos a fazer teatro ainda adolescentes. Mamãe assistia a quase todos os espetáculos, e nos levava depois pra casa. Hoje vejo seu esforço extraordinário para nos manter tão protegidas.

Mas o inimigo costuma estar mais próximo do que as mães supõem. Havia solícitos pais de amigas, “com olhar esquisito”, que insistiam em dar carona às meninas. Fugíamos deles. Escapamos de “pintar um clima”.

Uma viúva rica da rua, com três filhas, arrumou um namorado. A vizinhança faladeira o chamava de “gigolô” porque sua primeira providência foi aparecer de pijama na sacada de frente pra rua, “demarcando o território”.

Éramos amicíssimas das meninas, e zanzávamos de uma casa à outra, mantendo sempre cautelosa distância do “gigolô”. Um dia, calhou de eu estar lendo na sala da casa das amigas, e o indivíduo entrou e deu uma ordem: “Levanta a blusa!”. Eu devia ter 7 ou 8 anos. Fiquei vermelha “como um pimentão”. Eu era daquelas que ruborizavam, envergonhadas. Ele insistiu. Eu, paralisada. Calmamente, ele levantou a minha blusa, olhou. Não sei se me tocou. É difícil lembrar. Fui educada a respeitar os mais velhos, e sempre fui obediente. Não sabia como agir se “pintasse um clima” perto de mim.

A minha experiência de assédio na infância, ainda bem, parou por aí. Nunca tive coragem de contar a ninguém, nem mesmo a minha irmã. Era a minha “verdade secreta”. Não é mais.

Fujam, crianças. E contem, falem tudo, ser assediada não é sua vergonha. É vergonha dos homens depravados, em quem “pintam climas”. É vergonha dos “broxáveis”, que precisam da devassidão para estimular sua impotente virilidade.

Poder não é ser Presidente da República. É encarar sua canalhice, seu tamanho de anão moral em quem “pintam climas”, e reconhecer que não tem poder nem sobre a própria indignidade. 

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Escrito por:

Formação acadêmica: Conservatório Nacional de Teatro 1967-1969, Rio de Janeiro
Jornalista, atriz e diretora do Instituto Zuzu Angel/Casa Zuzu Angel - Museu da Moda. Manteve colunas diárias e semanais, de conteúdos variados (sociedade, comportamento, cultura, política), nos jornais Zero Hora (Porto Alegre), O Globo, Última Hora e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), onde também editou o Caderno H, semanal.
Programas de entrevistas nas TVs Educativa e Globo.
Programas nas rádios Carioca e Paradiso.
Colaborações e/ou colunas nas revistas Amiga, Cartaz, Vogue, Manchete, Status, entre outras publicações).
Atriz de Teatro, televisão e cinema, de 1965 a 1976
Curadoria de Exposições de Moda: Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histórico Nacional, Itau Cultural, Paco Imperial, Casa Julieta de Serpa, Palacio do Itamaraty (Brasilia), Solar do sungai (Salvador).
Curadoria do I Salao do Leitor, Niterói

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